A ditadura e o 'jeitinho brasileiro', segundo Maria Rita Kehl
28/03/14 08:40Cinquenta anos depois do golpe, como a sociedade brasileira lida com a memória deste período? Como funciona o subterrâneo psíquico de quem nela atuou, seja como agente repressor ou na luta armada? Qual seria o saldo do inconsciente coletivo?
A psicanalista Maria Rita Kehl, integrante da Comissão Nacional da Verdade, recebeu a reportagem em seu consultório no bairro de Perdizes, em São Paulo, para uma conversa que teve o tempo de duração de uma sessão de análise – 40 minutos.
Kehl foi editora do jornal Movimento, um dos mais importantes veículos da imprensa alternativa durante a ditadura. Atende pacientes desde 81, é autora de oito livros, e venceu o prêmio Jabuti de 2010 com “O tempo e o cão”.
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Como lidamos com a memória do período da ditadura?
Muito mal. A ditadura espalhou uma ideia que até hoje funciona na cabeça dos desinformados, de que era preciso “pôr ordem na bagunça”, ou “acabar com a corrupção”, e de que se houve alguma violência, ela foi pouca e necessária. Então até hoje, para muitos, o golpe está associado a isso, embora a corrupção não tenha acabado, pelo contrário.
E nem a ‘bagunça’.
Agora temos os protestos e o governo Dilma, que é inábil. Não digo que não seja uma boa governante mas não tem habilidade para deixar todo mundo contente, como o Lula.
Voltando à ditadura, há quem se recuse a se referir a ela como tal e afirme que a tortura inexistiu.
O autor judeu italiano Primo Levi, que sobreviveu aos campos de concentração na Segunda Guerra, escreveu que seu maior pesadelo era imaginar que ao contar sua história as pessoas não iriam acreditar. E é isso que acontece. Elas estão tão reprimidas no seu imaginário que não têm coragem de fantasiar situações desta natureza.
Existe algo de tipicamente brasileiro nesta relação?
O ponto central é a Lei da Anistia, especificamente no tópico que determina que ninguém seja julgado. Isso cria uma equivalência entre os que arriscaram a própria vida com os que exerceram a tirania. Existe um ‘jeitinho brasileiro’ na maneira como esse pacto foi costurado e na rápida reacomodação da sociedade, com ninguém tendo sido punido. Arnaldo Jabor fala sobre isso em “Tudo Bem”. E é o que Sérgio Buarque de Holanda chama de ‘homem cordial’. Este homem pode ser brutal no trato com empregados por exemplo, mas depois deixa barato pra dizer que ‘todo mundo se ama’. E assim a dominância de classes se perpetua.
Após a escravidão houve também uma reacomodação rápida da sociedade, não?
Sim, e a um preço horroroso, com hordas de escravos tendo sido jogados na rua. Nos Estados Unidos foi diferente, cada um ganhou um palmo de terra para trabalhar. Foi por isso que o cineasta Spike Lee chamou sua produtora de 40 Acres and a Mule.
Em alguns países a revisão da ditadura é tratada de forma diferente.
Veja o caso da Argentina. É claro que muito mais gente morreu por lá, mas isso não é parâmetro. O fato é que até os presidentes foram julgados e encarcerados.
Como uma pessoa comum se torna torturadora?
Instaurou-se um regime político autoritário sem uma oposição consentida. Só aí já temos uma ditadura. E se criou um mecanismo semi-secreto de abusos cuja prática dependia dos traços pessoais de cada agente do Estado. Assim a tortura se institucionaliza, mas nunca no papel. Não foi um desvio patológico. Virou um mecanismo de controle e repressão. Diria até que com a tortura o principal objetivo era criar um clima de terror. Só a intimidação não basta, é preciso mostrar que o regime também é capaz de matar.
E a tortura enquanto método de investigação?
Fica claro que a tortura não era utilizada para obter informação. Não é um mecanismo científico. Em geral tem uma hora que o torturado diz qualquer coisa, diante de tanto horror.
Como funciona a estrutura psíquica do torturador?
Ele sabe que está fazendo algo que não pode, tanto que até hoje pouca gente admite que a praticou. Raros são os depoimentos como o do coronel Paulo Malhães, em que assume que torturou, matou e ocultou cadáveres. O torturador sabe que se trata de um ato de exceção, escondido – mas o pratica porque está podendo. Tem um jogo sádico aí. Isso não quer dizer que todo torturador é um perverso em sua estrutura psíquica.
É o que, então?
Dizia Lacan que o superego não é uma instância ética. Seu funcionamento é muito paradoxal. No sentido de que o superego não é apenas um interditor, ele também nos encoraja a buscar o caminho mais fácil para exercer o narcisismo infantil. É como se ele estivesse dizendo: “você não pode gozar mas tem que continuar tentando”. E se tem um Estado falando “goza, meu filho” para um Sebastião Curió, para um Calhandra, para um Luis Maciel, deu no que deu.
Em outras palavras, a prerrogativa para ficar fora da lei é permanente, mas desde que seja sem um sentimento de culpa. Esse é um traço do neurótico. E se o Estado o autoriza, o perigo é imenso. Isso explica como os alemães abraçaram o nazismo. O povo alemão não ficou perverso de uma hora para outra. Foi o Estado que deu vazão ao instinto e ao sadismo que as pessoas não se autorizam por causa própria.
O filósofo Slavoj Zizek resumiu muito bem o papel do superego: se você pode, você deve.