Nise da Silveira, por ela mesma
11/04/14 16:43Uma entrevista com a médica psiquiatra alagoana Nise da Silveira (1905-99), feita pelo diretor Leon Hirszman (1937-87), que estava esquecida nos arquivos da Cinemateca Brasileira, em São Paulo, se transformou em “Posfácio – Imagens do Inconsciente”, filme que chega hoje ao Festival “É Tudo Verdade”, pelas mãos do cineasta Eduardo Escorel.
Nise revolucionou a psiquiatria no Brasil, ao introduzir a terapia ocupacional para os esquizofrênicos como forma de resgate da realidade, através da expressão artística e do trabalho manual. Em outras palavras, criou oficinas e ateliês de pintura, modelagem, costura, sapataria, encadernação, fazendo um contraponto à cultura do confinamento, do eletrochoque, da lobotomia e do uso excessivo de remédios que predominava em hospitais psiquiátricos da época.
Pioneira no estudo e divulgação da psicologia de Carl Jung, com quem trocou correspondência, Nise também criou o Museu de Imagens do Inconsciente, destinado à preservação dos trabalhos produzidos nas oficinas. E a Casa das Palmeiras, voltada à reabilitação de pacientes egressos de centros psiquátricos. O Museu e a Casa continuam em atividade.
Hirszman já havia dirigido a trilogia “Imagens do Inconsciente”, que consiste em três estudos de caso sobre os doentes e o trabalho artístico que desenvolviam.
A respeito dessa estreita colaboração, Nise escreveu um texto em que tece elogios à “penetração psicológica e artística” de Leon e “um vigoroso sentido social, se não político”, da trilogia.
Leon, que flertou com pensadores como Hegel, Feuerbach, Marx, Engels, Gramsci, Marcuse, Brecht, é conhecido pela direção de clássicos brasileiros como “Eles não usam black tie”, “São Bernardo”, “ABC da greve”.
Escorel, que era muito próximo de Leon, trabalhou na montagem de “Black tie” e “São Bernardo”, e realizou um documentário sobre o cineasta, “Deixa que eu falo”, de 2007. A respeito de “Posfácio” ele afirma, “trata-se de material que adquiriu o status de preciosidade arqueológica. O negativo original se perdeu, só existia uma cópia em 16 mm e o áudio completo”. A entrevista foi feita em duas etapas, nos dias 15 e 19 de abril de 1986.
Um ponto alto do documentário sem dúvida está na montagem a cargo de Escorel. Além da entrevista em si, que ocupa quase todo o tempo do filme, Escorel também recupera trechos do áudio de Nise que não foram filmados, e intervenções em off de Leon, com ou sem a câmera ligada.
Vários momentos são também pontuados por uma certa tensão no ar, diretamente relacionada à necessidade de economizar filme. “Naquela época, era sempre um pânico, o que mais se ouvia durante as filmagens eram frases do tipo ‘corta o mais rapidamente possível, antes que os negativos acabem’”, lembra Escorel.
Ele enxerga três grandes qualidades em “Posfácio”. Seu ineditismo, por se tratar de rara aparição da doutora Nise em registro audiovisual; a exposição da dinâmica de relacionamento entre ela e Leon, que tinha uma admiração sem limites a seu trabalho; e a descrição de duas questões cruciais para a psiquiatra – a terapia ocupacional e a reabilitação de doentes vindos de unidades psiquiátricas.
Luiz Carlos Mello, que trabalhou com Nise por 26 anos e atualmente dirige o Museu de Imagens do Inconsciente, participou das filmagens da entrevista. Ele conta que a entrevista era o ponto de partida para um trabalho mais abrangente que abordaria o círculo vicioso do doente que fica confinado no hospital sem acesso a uma vida social e familiar.
“Depois que ele recebia alta, quase sempre retornava. Esse índice era de 70%. Era preciso quebrar este círculo, e o filme seria sobre isso”.
A Casa das Palmeiras, fundada em 56, com a proposta de receber pacientes externos em um contexto intermediário entre a rotina hospitalar e sua reintegração à vida social, sempre representou um esforço nesse sentido.
As falas de Nise são tocantes. Sobre a “emoção de lidar” com o material de trabalho na terapia ocupacional, por exemplo. Primeiro ela menciona o francês Gaston Bachelard, a dizer, “sua saúde mental está nas suas mãos”. Depois menciona uma visita de Philippe Pinel, no fim do século 18, a um hospital na Espanha onde ficavam doentes de todas as categorias.
“Então, Pinel escreve mais ou menos isso: o nobre não pode pegar… trabalhar nada. Diz assim: ‘dê cá um copo d’água’. Não pode buscar um copo d’água. Os nobres que ficavam doidos, com a cronicidade de suas doenças, de seus delírios, a sua inatividade. Enquanto os plebeus que trabalhavam no campo, curavam-se muitos deles”.
Se cabe uma crítica ao filme, é à ausência de uma pesquisa de campo que pudesse contextualizar a obra de Nise ou um olhar sobre sua influência na psiquiatria nos dias de hoje. O que representaria seu pensamento à luz da reforma psiquiátrica visando a humanização no atendimento, ou sobre a evolução dos medicamentos no controle das crises? Ela, que chamava o uso excessivo de remédios de “camisa de força química”.
Mas não se pode exigir tudo de um só filme. E é bom lembrar que nos créditos, quem aparece como diretor é o próprio Leon, reforçando a ideia de que o recorte está situado na edição de uma entrevista com 98 minutos filmados de duração, e 2 horas e 37 minutos de áudio.