Os novos planos de Pablo Capilé
23/04/14 11:39Para junho, durante a Copa, o coletivo está envolvido com a ‘República da Cinelândia’, em que cerca de 200 militantes ocuparão com barracas o centro do Rio criando uma Constituição própria como forma de provocação, em que a maconha é legalizada e a polícia, desmilitarizada, por exemplo.
O segundo semestre contará com nada menos que 140 festivais de música. Para o período está também programado o lançamento do “Emergência”, espécie de Fórum Social Mundial do século 21, reunindo ativistas e redes sociais de várias partes do mundo, em São Paulo.
Com alcance em 500 cidades, o Fora do Eixo conta com 2 mil colaboradores pelo país e cerca de 60 casas sede, nas quais vivem aproximadamente 400 pessoas, em um regime próprio de convivência em que praticamente tudo é compartilhado. Nos planos do coletivo para o futuro próximo consta também a ideia de adotar crianças.
Pablo Capilé, 34, cuiabano, é quem está encabeçando estas empreitadas. Embora já venham atuando desde 2005, Capilé e o Fora do Eixo ganharam mais exposição no noticiário após os protestos de junho. Críticas e acusações vieram à tona. Para Capilé, o saldo é positivo. De acordo com ele, o coletivo cresceu desde então.
Segundo Capilé o coletivo recebeu apoio de diversas fundações internacionais desde então. Verba pública, de acordo com ele, representa uma parte muito pequena no balancete do Fora do Eixo. “A verdade é que a gente devia receber muito mais”.
Nesta entrevista ele explica como seu coletivo se posiciona politicamente: “o PT não é um câncer. Do PSTU até a Marina, a gente entende que é possível dialogar”. Pablo critica Dilma, a gestão atual do Ministério da Cultura, e oferece sua versão sobre os protestos de junho.
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Quais são as bandeiras do ativismo?
A variedade da pauta é imensa. Vai desde a necessidade de regulação dos meios de comunicação passando pela necessidade de desmilitarizar a polícia, a reforma política, a regulamentação das drogas, a criação de um ambiente favorável ao debate ambiental. Em suma, dar visibilidade aos invisíveis, conseguir conectar um país continental que tem 5343 cidades.
Parte significativa destas cidades está dentro de uma invisibilidade, muitas vezes não conseguem apresentar suas inteligências colocadas.
Como enxerga a Copa?
Os dois lados têm argumentos muito bem fundamentados. Você tem uma construção simbólica muito forte em torno da Copa, um encontro civilizatório num país que nos últimos 15 anos conseguiu se tornar potência global. Mas ao mesmo tempo esta é Copa das remoções, pautada por um estado de exceção defendido pela FIFA, pouco discutido com a parte debaixo da história toda, coordenada por federações de futebol pouco transparentes.
Existe um clima de insatisfação no ar.
Quando você tira 40 milhões de pessoas da zona de extrema pobreza, e elas se estabilizam, você estabelece um ambiente favorável para essa explosão. Eu tenho uma visão muito particular sobre os fatos que levaram à explosão de junho.
Uma utopia acontece a partir de 2002, quando um torneiro mecânico sai do chão de fábrica para se tornar presidente do Brasil. Isso estimula pra caramba simbolicamente um cara como eu, em Cuiabá, que tinha dificuldade para acreditar que era possível. Assim as redes começam a surgir e fortalecer.
Mas em determinado momento, nos 4 anos de governo Dilma, alguns alicerces principais do fortalecimento dessas utopias são rompidos. O debate da cultura, da comunicação, do meio ambiente, dos direitos humanos, da juventude, tudo isso deixou de ser uma prioridade. No Lula era prioridade. Entramos em um ciclo desenvolvimentista onde esses temas que eram muito importantes para essa geração, deixaram de ser.
Isso se soma a um processo de criminalização que veio acontecendo contra as lutas progressistas no Brasil. O Mensalão foi uma grande porrada, instigou parte mais conservadora da população a se levantar e combater em certa medida as reformas de um governo popular.
Então o levante das forças conservadoras se soma à insatisfação por parte de uma série de movimentos sociais, criando todo um ambiente.
Para mim o que aconteceu está muito distante de terem sido só os vinte centavos, e discordo completamente de quem tenta privatizar a explosão a partir de um tema específico. Foi uma série de fatores.
Qual a diferença entre São Paulo e Rio?
São Paulo é uma terra das certezas, o Rio é uma terra das utopias.
No pós-junho, vejo diferenças. No Rio, Cabral derreteu. Em São Paulo, quem tomou foi Haddad, em tese Alckmin se manteve estável mesmo sendo responsável por 99,9% das coisas que aconteceram.
No Rio a polícia derreteu, sua credibilidade está no chão. O debate sobre a repressão é muito mais intenso, a necessidade de desmilitarização está na boca dos movimentos e das pessoas. Em São Paulo, a polícia continua estável.
No Rio os movimentos estão cada dia mais conectados. Aqui em certa medida deram uma atomizada. O Rio puxou a greve dos garis. São Paulo em certa medida puxou a Marcha pela Família com Deus. Então acho que o Rio amanheceu melhor de junho, que São Paulo.
Mas mesmo amanhecendo de forma diferente do que o Rio, os movimentos de São Paulo ganharam muita força, se ampliaram e continuam ocupando as ruas e fazendo os debates fortes nas redes. MTST ou os movimentos de periferia da cidade, entre outros, demonstram isso com vigor.
Como enxerga o tecido social brasileiro?
Traduzo a partir de três grandes campos. Você tem os estabelecidos – a grande mídia, os partidos, o empresário grande, que são 2% do Brasil. Você tem os desorganizados por outro lado, que é o povo, lutando pelo seu dia a dia. E entre eles tem o ‘meinho’. Esse ‘meinho’ fica tentando falar pros desorganizados como resignificar a lógica estabelecida.
Tem dois grandes blocos este ‘meinho’: um que faz disputa de classe, e um da disputa do imaginário. O de classe está mais ligado à esquerda clássica marxista, com a defesa de temas fundamentais, desde o trabalho de base. Envolve desde MPL a juventudes de alguns partidos, além de MTST etc.
O outro lado que disputa o imaginário está falando sobre o futuro capital simbólico, está na guerra de meme, na disputa narrativa.
Um está mais próximo da economia solidária, o outro da economia criativa. Um dialoga mais com Estado, outro com mercado. Um foca no enfrentamento das lutas de forma mais tensa como barricada etc, outro encara a disputa simbólica como ferramenta de diálogo.
Muitas vezes os blocos têm dificuldade de dialogar. Estes grupos sempre tiveram dificuldade de conviver por disputarem a presidência do ‘meinho’.
Os movimentos tradicionais de base e de classe conseguem reunir 3, 4, 5 mil pessoas depois de junho. Já as redes de imaginário conseguem fazer com que mais gente se envolva.
Protestos de massa como os de junho podem se repetir?
Óbvio que pode não repetir a explosão de junho, mas não vai parar de crescer. É uma greve de polícia na Bahia, outra de gari, ocupações pelo Brasil inteiro, o parque Augusta, a luta antihomofóbica, e por aí vai.
Qual sua interface com os partidos políticos?
Do PSTU até a Marina a gente entende que é possível dialogar, conversar e quando solicitado participar. O PSOL tem crescido. O próprio PT tem se resignificado. Acho absurda a tentativa de criminalizar as lutas que o PT desenvolveu para o país. As pessoas tentam vender o PT como se fosse o Mensalão.
Não, o PT tem 30 anos, conseguiu tirar 40 milhões de pessoas da pobreza, colocou o Brasil no cenário internacional. Óbvio que tem contradições e equívocos mas tentar transformar o PT num câncer das lutas políticas é de uma imbecilidade tremenda. E estou longe de ser petista, não sou filiado.
Que pensa sobre nossa classe política?
Para haver reforma política é necessária a compreensão de que não dá para despolitizar o debate, ficar falando que todo político é um merda, que os partidos não prestam, que no Congresso só tem picareta. Se você criminaliza a política, abre porta para muitos perigos.
E sobre as críticas recebidas ano passado?
Uma comunidade como a nossa tinha tudo para se abster da relação com o resto da sociedade, que é o que maioria das comunidades fazem. Elas se afastam para não serem criminalizadas por uma visão moralista em torno da opção de vida que fizeram. No nosso caso, o que desencadeou o debate foi o post de uma cineasta que era patrimonialista, defendendo a propriedade privada, o direito autoral proprietário, numa visão muito parecida com a do blogueiro Reinaldo Azevedo. Acusando-nos de trabalho escravo, de que somos uma seita, de que ninguém lia ou assistia filme. Como assim? Estamos conectados na rede o tempo todo, os parâmetros de formação intelectual são completamente diferentes do século 20.
Não viemos de uma base de partido, nem das lutas sociais tradicionais, e nem de São Paulo. No final das contas a gente afronta tanto a direita como parte significativa da esquerda, que vive uma crise de protagonismo, que te chama de novo capitalista.
Qual a atuação política do Fora do Eixo?
Inicialmente entramos com uma política muito radical para tentar mudar o mapa musical brasileiro. Na música o debate partiu principalmente dos artistas que moram em São Paulo. É óbvio que não tem cachê em determinadas situações. São lugares onde não tem estrutura, não tem investimento público, só de passagem pode ser 15 mil reais, você vai ter um prejuízo inclusive. Então não ache que você vai ganhar a mesma coisa tocando na rua Augusta e no resto do Brasil. O problema de distribuição de renda é da Dilma, não meu.
Em parte a ausência de um protagonismo por parte do Ministério da Cultura fez com que uma parcela da classe cultural canalizasse suas frustrações para nós. A gente com esse orçamentozinho é mais debatido que o Minc.
A verdade é que os últimos 4 anos no ministério estão muito aquém do que aconteceu nas gestões de Gilberto Gil e Juca Ferreira. As políticas foram descontinuadas, as utopias não foram alimentadas. Veio primeiro Ana de Hollanda, que foi uma não-ministra. Se Marta tivesse vindo depois de Juca, a cobrança seria muito maior, e ela teria feito uma gestão melhor do que a atual. Somos uma mistura da estratégia dos pontos de cultura da gestão Gil, com cultura digital. Por isso defendemos o legado dessa construção.
Qual o tamanho, alcance e faturamento do Fora do Eixo?
Atuamos em mais de 500 cidades brasileiras, nos 27 Estados, através de iniciativas variadas. A rede é multifacetada e diversa, você não tem condição de fazer uma sistematização completa com todos os dados. É uma rede que trabalha o tempo inteiro com a perda de controle. Não tem uma central que coordena essas paradas todas.
Como funcionam a universidade e o banco?
A universidade consiste na troca de repertórios. São vivências nas casas. Todos integrantes são corpo docente, e todas estruturas são campos. Por exemplo, a Ivana Bentes, diretora da escola de comunicação da UFRJ, é um corpo docente que roda as casas falando sobre midialivrismo, redes etc. Assim como Juca Ferreira, Emicida e tantos outros, pessoas que sempre circularam entre nós.
E o banco?
O que é o banco? A gente é o único movimento que conseguiu resolver uma coisa que ninguém resolve, que é a disponibilidade dos ativistas. Eles têm disponibilidade 24 hs. Ninguém tem isso. Porque acreditam que isso é bom pra vida delas. O fotógrafo, o designer, o artesão, tudo isso gera recurso. Prestamos serviços para parceiros, para outros coletivos.
Quantos ativistas são?
Hoje são mais de 2 mil pessoas espalhadas pelo Brasil. 400 delas vivendo nas casas. São umas 60, 70 casas. Sobre faturamento é difícil falar um número fechado porque ele muda. Por exemplo, o festival Grito Rock aconteceu em 500 cidades, você não tem clareza de quanto girou, só terá dentro de 3, 4 meses. Se falar que girou R$ 500 mil, pode estar falando de um número maior ou aquém. E vai ter mais 140 festivais no segundo semestre, alguns até maiores.
E editais e recursos públicos?
Um dado importante é de que uma parcela muito pequena dos nossos recursos é proveniente do poder público. Muito pequena mesmo, tipo irrisória, frente às coisas todas que a gente faz. E eu acho que a gente tinha que receber muito mais investimento público. Lembre que até o Rock in Rio recebe verba pública. Assim como os jornais e TVs. Não é demérito nenhum você receber.
Em 2014 não recebemos nada e nem em 2013.
Como funciona a vida coletiva?
Eu diria que morar junto, dividir a angústia, a felicidade, a tristeza, faz você de você um forte por não se sentir só. É a força motriz.
É verdade que vocês estão com plano de adotar crianças?
Nasceu o Benjamin aqui dentro da casa, há um ano e pouco, o tempo está passando. Foi o primeiro bebê, além de outros bebês a gente acha fundamental a adoção sabendo que tem um monte de criança precisando. Temos um espaço coletivo para a criação dessas crianças, temos condições para adotá-las. Estamos começando a estudar e a saber como a parada funciona.
Que pensa da Marina Silva?
Acho que ela ainda não conseguiu traduzir para quem é entusiasmado com ela quais são os próximos passos que ela quer dar, acho que isso está meio nebuloso. Ainda é muito superficial e plástica essa conexão dela com o Eduardo Campos. Ela não fez um download disso.
Qual sua história pessoal?
Sou de Cuiabá, fiz comunicação e direito na faculdade, mas não graduei em nenhuma. Já fazia teatro, audiovisual e música desde pequeno, meus pais sempre incentivaram. Meu pai é historiador e minha mãe, assistente social, foi coordenadora do Mobral.
De onde surge a militância social?
A consciência social veio desse ambiente e também com minha mancha no rosto, ela também ajudou nisso, ajudou eu a ter uma percepção do diferente. Nasci com ela -é um hemangioma. Então a perspectiva do diferente sempre esteve comigo, em determinados momentos recebi tratamentos diferentes, e isso me aproximava de outros que também eram vistos assim… Mas hoje não, a partir do momento que resolvo essa questão, vou muito forte pra cima.
Qual sua rotina?
É um flow contínuo. Durmo pouco, umas 4, 5, às vezes 3 horas, inclusive sábado e domingo. A gente não trabalha, a gente vive né, você tem uma lógica diferente de dividir o tempo. As pessoas geralmente trabalham sob tortura das oito às seis, das seis às dez elas gastam os créditos que ganharam sob tortura para esquecê-la, e depois têm pesadelo nas oito horas seguintes para conseguir lidar com essa esquizofrenia.
A gente vive 18 horas por dia e sonha seis. Cada dia uma dinâmica nova.
Quais são os planos do Fora do Eixo?
Estamos lançando o portal do Mídia Ninja. Ideia é criar um hub comum não só com nosso conteúdo mas de outros coletivos e redes. Atualmente temos 2 mil colaboradores com a gente. Muitos coletivos se chamam Mídia Ninja e não necessariamente têm uma ligação direta com a gente. Haverá uma zona de curadoria manual, e um roll com uma timeline infinita onde vai entrar o que todo mundo postar. Vai ter também um live feed com os vídeos transmitidos ao vivo em tempo real.
Então funciona como TV e como portal. Estamos estruturando uma grade com programas fixos de estúdio também. Não serão necessariamente só nossos mas formam um mosaico. A ideia é produzir e redistribuir conteúdo qualificado de produções que estão invisíveis na rede. Rodam atualmente 5 milhões de page views semanais na nossa página no Facebook. Teremos 100 articulistas, de dentro e de fora de nossa rede.
Que outros projetos?
Temos 140 festivais no segundo semestre. E organizaremos a ‘República da Cinelândia’, que não é só nossa mais. Um monte de movimentos ocuparão durante o mês da Copa a Cinelândia, criando uma zona autônoma temporária que vai ter Constituição própria. Na República a maconha é legalizada, a homofobia é crime, a polícia é desmilitarizada. São provocações.
Em que termos vai se dar essa ocupação?
De 150 a 200 pessoas morando em barracas e recebendo a visita de jornalistas internacionais e interessados nesta disputa simbólica e narrativa do que significa essa Copa.
Como visualiza o futuro do jornalismo?
O novo jornalismo não é o velho jornalismo sem dinheiro. O novo é multifacetado, diverso, ajudando a mobilizar. É partícipe, é parcial, replica o outro. Nesse novo ambiente onde todo mundo tem mais ou menos o mesmo tamanho, você vai ter mais visibilidade se colocando, do que tentando apresentar os dois lados. Na formulação da opinião, o meio termo é o zero a zero universal. Não te leva pra frente nem pra trás.