Viagem ao inconsciente de Gerald
24/04/14 16:12Por Tracy Segal
A naturalidade de Gerald Thomas é um enigma. Hoje ele afirma ser americano de carteira, mas no wikipedia consta ser carioca. Conta que sua mãe foi uma psicanalista judia de ascendência inglesa, que seu bisavô pertencia ao histórico grupo literário Bloomsbury Group ao lado de ilustres escritores como Virginia Woolf. Gerald fala com sotaque nativo pelo menos três idiomas: o inglês, o alemão e o português.
Em entrevista via skype de seu apartamento em NY conversamos com esse personagem beckettiano sobre sexo (“eu sou um pornógrafo, me prostituí quando tinha 14 anos”), Brasil (“O Brasil não tem patriarcas, não tem corte suprema, não tem constituição”), teatro, guerras, preconceitos.
Um homem sem raízes, espalhado pelo planeta. Devoto de Obama e sobrevivente da contracultura. Um obsessivo pelo teatro conhecido pelas polêmicas midiáticas como mostrar a bunda para um teatro municipal lotado que vaiara sua opera wagneriana, e que lhe rendeu um processo incômodo em terras brasileiras.
Está em cartaz em São Paulo com “Entredentes”, no Sesc Consolação, com Ney Latorraca, Edi Botelho e Maria de Lima. Uma peça que fala de muros (Berlim, Lamentações) e o drama humano com o humor inerente de Gerald Thomas. “Tem uma buceta no palco, enorme. Só as mulheres mais conservadoras não vêem. Uma tremenda bucetona ali. E as pessoas saindo pelo cu. O que entra pela boca sai pelo cu.”
Atualmente Gerald se divide entre arte e ativismo político no Partido Democarata dos EUA. Está trabalhando com a “New York Dry Opera Company Theatre” e vai remontar ainda este ano a sua peça “Nowhere Man”.
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Vamos do começo. Onde você nasceu?
Nasci nos EUA e fui para o Brasil aos 7 anos. Eu só vivi no Brasil entre 7 e 14. Depois disso nunca morei no Brasil, sempre em hotel. Não criei raiz, criei um teatro.
Como foi essa época no Brasil?
Eu fazia o curso do Ivan Serpa. Eu tinha 9 anos e a galera tinha 30. Aos 9 anos, entender o que era Duchamp! Mas eu entendia, adorava. Warhol, Pollock. Eu entendia que não era ilustração. Demorou um tempo pra entrar na cabeça. Aí o Hélio Oiticica, que me comia aos 13 anos, falava: “se não entrar pela cabeça entra pelo cu, boneca”. Eu vivi essa transição dos anos 60 e o mundo virou hoje essa caretice do twitter…
Mas tem uma nova geração bi.
Mas tem também os skinheads dando porrada nos gays na Paulista. O legado que a gente pode ter deixado é isso. Por que eu não acredito em homossexualidade e não acredito em heterossexualidade, eu acredito em sexualidade. Eu sou da época em que fazer orgia era a regra.
Você acha que no Brasil existe um hipererotismo?
Numa praia carioca tem uma coisa de se roçar e se beijar. Uma demonstração do sexo, mas não trepam. Eu lido com erotismo meio Bataille, quebrando barreiras do good behaviour. Tem uma indulgência com fantasias e coisas proibidas. Estados Unidos e Alemanha estão no fronte, têm uma indústria pornô onde só se mija e caga. Também muito moralista. Não se trepa mais normalmente.
Eu sou um pornógrafo. Eu faço, eu não assisto. Eu já me prostituí. Aqui em NY aos 14 anos. Você não tem noção o que é um garoto pegar um casal de velhos moralistas de Ohio pedindo absurdos dentro do quarto de um hotel. Na noite anterior eles rezavam com os filhos e depois estavam pedindo pra eu cagar na boca.
São os muros?
Evangélicos histéricos. Eu tive a maior aula de hipocrisia. Essa turma de Utah, os mórmons. Mas se você se solta sexualmente você não tem rancor, não tem ódio. Eu sou filho dos anos 60 onde a norma era uma orgia. Era uma suruba.
O que você acha da situação da Palestina?
Eu odeio muros. E olha que vivi intensamente o muro de Berlim também. Eu acho horrível! Uma população que passou por várias diásporas, agora criarem uma separação física. Entendo que tem um Hamas, um Hezbollah. Mas eles não vão deixar de existir por causa de um muro.
Como é que uma pessoa da década de 60 como eu, que marchou contra Vietnã, da contracultura, como que eu posso aceitar que judeus criem barreiras físicas, reduzindo Gaza a uma faixa mesmo, com uma população inteira que não tem como crescer? Uma favela.
Como o Rio.
Não gosto das favelas do Rio, que ficam na cara da Zona Sul e todos achando normal a miséria.
Mas nos EUA também tem muito preconceito.
Se você pensar como o mundo trata o islâmico, sim. Tenho amigos islâmicos, muitos são gays, ou negros, mas se eles disserem que são islâmicos todos fogem. Qualquer tipo de classificação, humilhação ou perseguição é horrível. Eu tenho uma filha negra no Rio de Janeiro. Ela é negra e sofre com isso. Quando descobrem que ela filha do Gerald Thomas aí tudo muda. Isso é ridículo.
E a mídia brasileira?
Eu não posso levar a sério. Tem uma coisa no jornal brasileiro que é muito irritante, que é uma chamada de ponta a ponta de capa com foto de um gol. Isso é escandaloso. Para o New York Times um coast to coast é “Man walks on the moon”, se não é só uma coluninha.
E a Caras?
Eu adoro a Caras. Eles me levaram pra Israel, eu nunca tinha ido, em 2001. Tudo pago. Eu era convidado do governo, horrível dizer isso, Ariel Sharon. Mas o Arafat estava vivo. Eu falei: eu quero ir lá para Ramallah. Ficaram loucos e me disseram: você não pode, é convidado do Ariel . Eu disse, tô cagando. 15 minutos de distância, mas que demoram três horas. Você chega num lugar destruído. Eu fui e apertei a mão do Arafat. E lhe falei, você é considerado terrorista hoje, Ariel Sharon foi considerado terrorista em 48.
Volto a Jerusalém sempre que posso. Todo mundo se dá bem e toma um café com cardamomo.
O Brasil funciona?
Não. Não tem founding fathers [patriarcas], não tem um supreme court [corte suprema], não tem uma constitution [constituição].
Você acha que é uma questão cultural?
Tem um juiz na suprema corte americana que diz: “Nós somos um país experimental, nós somos um corpo em movimento, pela diversidade.” Quem é o americano? O americano norueguês, o americano lituano, americano coreano? Aqui é o lugar de emancipação do negros, liberação das mulheres, direitos dos gays. É claro que tem os doidos que matam vinte numa escola. O Snowden que delata todo mundo. Mas causa mudança.
Tem a cena da Maria em “Entredentes” onde ela descasca o Brasil enquanto o Ney a vaia. Então ela para e diz que esse discurso é do diretor e começa a elogiar o Brasil pelas coisas mais horríveis, como o cheiro de mijo. Como assim?
O discurso da Maria é meu também. Metalinguística. Eu decupo o hino nacional , que deve ter sido escrito por um alemão. Um povo heroico o brado retumbante!? Eu falo: estamos retumbando há séculos. Retumbado povo. Tumba. Morto. Grito. Morte. É redonda a palavra. E todo mundo sentado assistindo, impassível.
E as manifestações de junho?
Eu vi as manifestações e achei do caralho, mas acabou. Falta de história. Aqui nasceu a distorção da guitarra, nasceu Hendrix, Bob Dylan, o protest song. Aí no Brasil, teve uma geração tropicalista, mas não tem uma história de luta. A independência aqui foi sangrenta. Pro brasileiro tá tudo certo. Flamengo, chopp…
Mas qual o plano? Não tem organização. Claro, sou cético, niilista. Você vê a revolução egípcia. Primavera árabe e deu no quê? Eu tô mais velho e menos entusiasmado pelas mudanças.
Você acredita que o problema do Brasil seja cultural?
Tem a teoria do Lévi-Strauss de que país quente é isso. Desmentido pela existência do Mandela. No frio você precisa se organizar, planejar seu dia. Você não pode ficar numa calçada em Realengo e passa um cara que grita: quer um chicabon? Às vezes eu acho que é a realidade ideal. Ninguém briga e fica tudo bem. Aqui fica essa luta. A Criméia, a Rússia, a Polônia que já foi de tantos países! Todo mundo sofrendo, pálido com falta de vitamina D. Só pra estabelecer uma fronteira, um muro. Agora essa situação na Ucrânia, com os judeus sendo chamados para se registrar. Isso já aconteceu há cem anos, na primeira guerra mundial, foi ali que começou o nazismo oficial.
E Obama?
Isso merece um exemplo. [Gerald faz uma tour eletrônica pelo seu apartamento no East River , vejo várias fotos presas na parede do Obama com Michele, no jardim da Casa Branca, entre fotos de Beckett e desenhos próprios. Pendurado o macacão amarelo que usou no 11 de setembro. ]
Eu amo o Obama. Conheci ele na campanha, viajei 16 Estados. Sou filiado ao partido Democrata.
Eu tenho a impressão de estar conhecendo um outro Gerald, o americano?
Eu sou americano. Eu voto aqui. Eu sou um fanático democrata. Eu assisto o canal do Congresso e Senado americano. Tenho cartas que recebo da Casa Branca.
Eu sou engajado. Apaixonado. A única coisa que me interessa nisso, uma obsessão, é participar das reuniões semanais sobre o Health Care (sistema de saúde nos EUA). Vou a todos as reuniões. Levo isso muito a sério, eu sei que existem interesses, mas ainda acredito.
Drogas?
Eu me droguei muito. Mas eu só tinha uma droga, cocaína, e só pra trepar. Ficava três dias trepando, já não sabia mais com quem. Eu não bebo, detesto álcool. As pessoas cheiram e bebem e fica todo mundo com aquela cara de Francis Bacon. Eu tive uma experiência no final do ano passado depois de anos sem nada. Eu fui numa festa e bebi um suco de cranberry por que era a única bebida não alcoólica da festa. E bebi, mas tinha cristal, special k, um coquetel. Já fiquei louco e desmaiei. Depois disso liguei para o meu cara e peguei 20 gramas, fiquei 10 dias direto.
Você já se considerou viciado?
Não acredito nisso. Cigarro que é o mais difícil, eu parei de um dia para o outro. Nunca fui de cheirar direto, comecei muito cedo com Hélio Oiticica. Eu comprava pra eles no Bronx, por que eu tinha 14 anos e ninguém podia me prender. Eu tomei LSD, maconha, odeio os retardantes. Eu tomei ecstasy e nada. A única coisa é um canudinho. Eu sou um workaholic, eu trabalho. Escrevo muito. Tenho vários livros, não sei quantas óperas. Como você vai pegar um avião para Pequim cheirado? Mas eu tirava dias para orgias.
“O teatro morreu”?
Eu ouço esta frase desde os 16 anos. Na Inglaterra estava pichado nos muros da escola. Morre e renasce.
Mas aqui há cada vez menos público no teatro.
Em NY, a gente tinha o movimento off off Broadway. Hoje o experimentalismo acabou. Você sempre tem uma geração correndo atrás da outra sem reconhecer o novo. Mas agora não se experimenta mais por que você tem o compromisso de fazer dinheiro. Esse compromisso não te permite fazer mais associações joycianas. Você tem compromisso com o sucesso.
Hoje eu faço teatro com o Ney Latorraca. Eu vejo o pessoal da praça Roosevelt, mas agora eles têm uma escola, têm compromissos. Sempre assim, já vi esse filme, eu sou da geração Godard, Glauber. E antigamente a gente vivia de box offic [bilheteria], agora precisa de sponsor [patrocinador].
O que causou esta mudança?
Por que estava se investigando uma parte interessante do cérebro que ainda questionava as condições existenciais. Agora com 140 caracteres o que você vai dizer? No facebook a foto da comida é mais importante do que a comida. Com instagram as pessoas se fotografando entrando, saindo…. pra que? Quanta bobagem. Agora ninguém olha para o outro. O teatro é o interesse pelo ser humano. Agora o interesse reside aqui [aponta o aparelho celular]. Cada revolução gera uma contra-revolução. Veremos.