Preto sobre preto
06/05/14 15:47Por Tracy Segal
À frente do Club Noir em São Paulo, companhia teatral que encena peças da dramaturgia contemporânea, Roberto Alvim é um dos principais diretores teatrais da atualidade. Numa realidade fluida, podemos tentar definir seu teatro como uma experimentação de ponta, influenciando toda uma nova geração de artistas.
Recentemente em cartaz com o “Tríptico Samuel Beckett”, no CCBB de São Paulo, contando com Nathalia Timberg no elenco, Alvim inaugurou uma nova fase em seu teatro, com uma visibilidade mais popular. Foi um sucesso de público e de crítica.
Três anos antes Alvim havia apresentado com sua companhia o espetáculo “A amante” no mesmo CCBB e foi vaiado, xingado e teve até que sair escoltado pela porta de trás do teatro. Pessoas reclamavam do minimalismo. Uma das características do seu teatro é a escuridão com pequenos focos de luz fria iluminando os atores com figurinos escuros, o preto sobre preto.
Seu próximo projeto, “Terra de Ninguém”, de Harold Pinter, contava com José Wilker no elenco, quando Alvim foi surpreendido por sua prematura morte. O ator havia abraçado o projeto, e abriu mão de várias propostas na TV para se dedicar ao trabalho com Alvim. Chegou a ir a Nova York para assistir a montagem na Broadway da peça. “Compartilhávamos a certeza de que seria um acontecimento estético histórico no teatro brasileiro”.
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Como você recebeu a notícia da morte do José Wilker?
Eu tinha falado com ele três dias antes da morte. Depois, o Felipe Hirsch me ligou… até pensei em abortar o projeto, não fazia mais sentido. O teatro lida com isso. De qualquer modo a peça com ele vai existir , nesse lugar, das obras que ninguém nunca vai ver.
Se eu realmente fizer, vai ser uma peça muito melhor, seja qual for. Mesmo que eu venha a encenar esta peça com outro ator, o espetáculo com o Wilker permanecerá num lugar intocável em meu imaginário: esse lugar das obras que nunca virão à luz.
O seu teatro busca este tocar no inominável, na morte. Como foi o choque de se deparar com a morte concreta?
A personagem dele na peça do Harold Pinter era alguém no umbral da morte. Na iminência de se tornar essa fantasmagoria. Antes que a gente tivesse se preparado, ele se configurou como ausência. Acho a morte uma coisa bela e terrível. Você é obrigado a encarar a morte de forma bruta. A morte prematura. O Wilker era mais saudável do que eu. Era mais provável ele receber uma ligação sobre o meu óbito (risos).
O teatro só tem sentido para este encontro do incontornável com o implacável. Quando esse encontro se dá antes que a gente espere, não tem sentido. O Walmor Chagas foi um cara que teve uma morte exemplar. Ele decidiu sair de cena. Eu senti um respeito gigantesco por ele. Mas no caso do Wilker…
Você acha a arte contemporânea muito elitista, hermética?
Hermético é aquilo que não instiga o nosso imaginário. Existe uma diferença entre ser impenetrável e ser enigmático. Toda arte contemporânea é enigma, mas tem que nos instigar a procurar por todos os sentidos possíveis.
Claro que existem obras impenetráveis, são obras ruins , egocêntricas, narcisistas. Que não deixam o outro entrar. O enigma propõe a emancipação do indivíduo. As respostas serão inventadas por cada um que dialoga com a obra.
Independente de ser enigmática a maior parte das obras contemporâneas são estimulantes para nossa histeria coletiva. Principalmente no cinema, TV e teatro.
Quando a arte é enigmática e quando é impenetrável?
Não há um quadro de referências: o artista que vai criar. Muitas obras que pra mim são enigmas, para outros serão impenetráveis e opacas. A questão básica: as obras de arte contemporânea têm que se dar como um final do processo de psicanálise, que é a percepção de que toda busca que nós temos por um significado definitivo, por construir uma identidade, de procura por objetos que incendeiem nosso desejo (produtos, sexo, drogas, etc). Tanto os significados quanto as construções de identidade, são ilusões. A grande obra de arte tem que nos confrontar com esses campos ilusórios, com a fantasia que perpassa essas instâncias.
O teatro, a arte, se torna produto?
O artista que repete a forma como modelo, como a moda do uso de tecnologia indiscriminado baseado em cópias, está fetichizando. Criando um rótulo. Um simulacro.
Recentemente você dirigiu a Nathalia Timberg no espetáculo “Tríptico Samuel Beckett” no CCBB. Como foi esse encontro da Nathalia Timberg com a companhia Club Noir e Samuel Beckett?
O ponto é que não houve nenhum ruído entre mim e a Nathalia. Beckett, assim como Harold Pinter, são dramaturgos que inventaram sistemas cênicos radicalmente singulares, e quando faço esses convites a estes atores e eles aceitam, estamos todos partindo do princípio de que faremos obras de invenção.
Um dia no camarim, após uma apresentação do ‘Tríptico”, Natalia falou que pela primeira vez ela não estava fazendo uma personagem, mas um conjunto de sensações e impressões. E um amigo, que estava presente, comentou: “Quem diria que a Nathalia Timberg iria dizer isso.” Ela retrucou irritada: “por quê?” . A Natalia representa o TBC, o teatro mais tradicional enquanto personagem e narrativas.
O teatro de Roberto Alvim virou uma marca?
Há um tempo um amigo me falou o seguinte: “Quando as pessoas reconhecerem teu trabalho automaticamente, você tá feito, você faz parte do sistema.” Eu acreditei nisso. E lutei pra criar uma espécie de marca, esse conselho faz sentido mas ele é terrível.
Por exemplo, as mesmas pessoas de quando fiz “A Amante” no CCBB, que me apedrejaram, foi o maior índice de reclamações , as pessoas pediam o dinheiro de volta, saíam no meio da peça, gritavam, cheguei a sair escoltado. Essas mesmas pessoas agora aplaudem de pé e gritam ‘bravo’ no mesmo CCBB, com o “Tríptico Beckett”. Elas continuam a não ver, mas agora tem a Nathalia Timberg e eu também, eu que virei um brand. Se a obra não era vista antes, no sentindo real, ela também não é vista agora.
Qual a importância da atriz Juliana Galdino, que além de sua esposa é uma das atrizes mais potentes dessa geração, no seu trabalho?
Só faço o teatro que faço por trabalhar com uma atriz como a Juliana – sem parceiros que se irmanem em um posicionamento existencial radical, o trabalho em teatro se torna impossível. É preciso, para um encenador, encontrar atores que se proponham (de um modo integral) a fisicalizar cenicamente proposições extraordinárias, jogos de linguagem excêntricos.
Numa perspectiva histórica onde se insere o teatro de pesquisa no teatro brasileiro?
Podemos localizar o começo de tudo nas encenações de Antunes Filho (com MACUNAÍMA) e de José Celso Martinez Correa (com REI DA VELA); em ambas as ocasiões, houve a instauração efetiva de sistemas cênicos originais, da ordem da invenção. Isso se desdobrou em uma série de outros encenadores ao longo dos anos 80 e 90, nem sempre com a efetividade radical que se deve esperar de obras de arte. A luta entre um teatro que se localiza no campo da arte e um teatro que se localiza no campo da reprodução de técnicas pré-existentes continua a ser travada diariamente em nossos palcos.
Você acredita que o Brasil ainda viva à sombra da cultura europeia?
Em Macunaíma propõe-se que o Brasil nunca será uma civilização como a européia por que o brasileiro não tem caráter: é um sobrevivente amoral que se adapta às circunstâncias mentindo o tempo todo sem coerência ou retidão ética. Mas podemos ir mais além: o Brasil nunca será uma civilização como a europeia. Porque nossa vocação é encarnar as forças da natureza: cruéis, brutais e indiferentes ao sofrimento humano (posto que o sofrimento humano – assim como a ética – é uma criação européia; e a Europa mostra-se totalmente inviável em nossa selva: o paraíso tropical é o curaçao das trevas).