A Copa segundo Ruy Castro
17/05/14 02:22Para explicar a gênese de “Os garotos do Brasil – um passeio pela alma dos craques”, que a editora Foz está lançando, o escritor e colunista da Folha Ruy Castro cita Nelson Rodrigues: “sempre concordei com ele quando dizia que, em futebol, o pior cego é o que só vê a bola. Nelson, que tinha miopia aguda, mal enxergava a bola em campo. Então, como via mal o jogo, tinha de limitar-se a radiografar a alma dos jogadores”, diz.
“É por isso que suas crônicas de futebol, que se referem a jogos disputados há 50 ou 60 anos, podem ser lidas hoje com o mesmo entusiasmo – porque não tratam exatamente de futebol, mas do grande teatro humano que se passava em campo”, acrescenta. Assim, Ruy imaginou um livro que se concentrasse mais no lado humano dos craques.
Os 25 textos que compõem a obra foram publicados nos últimos 20 anos em diversos veículos – quase todos, revistas de circulação dirigida. Entra em campo a reconhecida habilidade do autor no resgate histórico, revelando os sonhos, traços de caráter e miudezas de alguns de nossos maiores ídolos, como Pelé, Garrincha, Bellini e Zico, entre outros. Trata-se, enfim, de uma coletânea abrangente e despretensiosa, escrita por um jornalista e torcedor (fervoroso flamenguista) que viu jogar quase todo mundo, de 1958 até mais ou menos 1990, nos estádios.
Ruy também trata de esmiuçar alguns dos fundamentos clássicos do que seria por assim dizer nossa sociologia do futebol, como a ginga, que vem da capoeira (“Goethe e o almirante Nelson não tinham ginga. Nós temos. E daí?”), ou o complexo de vira-lata – expressão criada por Nelson Rodrigues para designar, segundo o próprio, “a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo”. A Copa de 50 seria um protótipo.
E o que foi feito de nosso complexo de vira-lata, a essa altura? “Nunca o Brasil encarnou tanto o complexo de vira-lata quanto atualmente. E, de certa maneira, nunca nos deu tantos motivos para isto”, arrisca Ruy.
“A partir de junho do ano passado, tudo virou motivo para protesto, e a Copa era um alvo fácil. Por que não começaram a protestar mais cedo? Se o Brasil começar a jogar bem e vencer, o povo vai aderir à seleção e deixar a minoria que não quer Copa falando sozinha. Mas, se fracassar…”
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Que revelações traz seu livro? Como foi o processo de pesquisa?
Acho que os leitores se interessarão pela dualidade que descrevi entre Pelé e o homem que o acompanha por toda a vida: Edson — ou seja, ele mesmo. Talvez eles se comovam com os desencontros entre Gigghia, o carrasco uruguaio do Brasil em 1950 [depois tão homenageado por nós] e seu adversário brasileiro, Juvenal, que, ao contrário, morreu abandonado. Gostei muito também de escrever o perfil do Bellini, porque, sem dizer que ele sofria da doença de Alzheimer, dou a entender isso ao leitor. E há também pensatas sobre o Garrincha que não estão na biografia que fiz dele, “Estrela solitária” — porque biógrafo não pode pensar, apenas descrever.
Ao ler seu livro, foi inevitável fazer a comparação, entre o que era o futebol naquele tempo do Bellini digamos, e hoje em dia. Pincei algumas partes: bolas de couro graúdo e uniformes de algodão, quase todo mundo jogava no Brasil, o dinheiro era outro. Então tenho algumas perguntas sobre o ontem e o hoje: a ginga se universalizou?
Sem dúvida, falo disso no livro. Os europeus absorveram as nossas qualidades. Falta agora nós absorvermos as deles.
No que diz respeito à crônica esportiva, locução, transmissão de rádio e TV, o que mudou?
Na primeira Copa que acompanhei para valer, a de 1958, muitos jogos foram disputados em campinhos ridículos — o da estréia do Brasil, contra a Áustria, numa cidade chamada Udvalla, acho que tinha arquibancada escavada no barranco! Bem diferente do que é hoje a Copa do Mundo, não?
O futebol jogado antigamente, plasticamente era mais bonito de se ver?
O futebol em si, não sei, mas o brasileiro, sem dúvida. Principalmente porque todos os nossos craques, com uma ou duas exceções, jogavam aqui, disputavam os nossos campeonatos. Imagine a maravilha que era você poder ver jogar o Garrincha toda semana no Maracanã e o Pelé no Pacaembu. A seleção campeã do mundo de 1958 tinha três jogadores do Vasco, três do Botafogo, dois do Santos, um do Flamengo, um do Corinthians e um da Portuguesa de Desportos. Uma semana depois de conquistar o título na Suécia, já estavam todos aqui de volta, disputando os campeonatos carioca e paulista — que tal?
Qual a diferença dos garotos de antigamente e os de hoje?
Talvez o futebol fosse mais importante para os garotos do meu tempo, nos anos 50. Tínhamos muito menos opções. A vida se dividia entre jogar pelada, colecionar figurinhas e tentar beijar as priminhas na escada de serviço.
Você ainda assiste aos jogos do Flamengo?
Religiosamente — inclusive os de sub-20, sub-17, basquete etc. Agora vou pouco ao estádio, mas, pela televisão, não perco um.
Para onde caminha nosso futebol?
Para a mesmice.
Que achou do Maracanã reformado?
Ainda não fui, e temo ver o que ele se tornou. O pior não foi nem o encolhimento a que o submeteram, mas torná-lo parecido com 200 outros estádios no mundo.
Como anda sua relação com o Rio de Janeiro? Por que momento você acha que a cidade está passando?
O Rio é minha pele, e minha temperatura regula com a dele. Estou empolgado com essas obras todas que estão sendo realizadas — muitas delas, como a derrubada da Perimetral e a revitalização do Porto, eram sonhos que eu acalentava há décadas. E as UPPs, apesar das sabotagens a que estão sendo submetidas por certas forças políticas, são um sucesso.
Você acha que a gente leva esta Copa? Qual sua visão pessoal sobre a seleção, sobre Neymar e sobre Felipão?
Sinceramente, não conheço a maioria dos jogadores — não acompanho o campeonato inglês, nem o alemão, nem o russo, que são os que eles disputam. Mas basta o Brasil entrar em campo para impor respeito ao adversário. Cansei de ver isso na Europa, onde morei nos anos 70. Felipão está para a seleção assim como o Chacrinha estava para o auditório — é um animador, não? Talvez isso seja suficiente: se você tem o Neymar e mais alguns para ajudá-lo, não precisa se preocupar com esquemas táticos — basta alguém fazendo caretas e esgares na área reservada ao técnico…
O que (acha que) Nelson Rodrigues diria sobre a seleção atual e toda discussão em torno dos preparativos da Copa?
Essa, vou ter de passar. Acho impossível imaginar o que o Nelson diria sobre qualquer assunto. Quem acha que pode fazer isto é porque não conhece
bem a obra e a cabeça dele, sempre surpreendentes.
Que pensa do movimento “não vai ter Copa”?
De que adianta não ter Copa? Os hospitais e escolas vão surgir do nada, de uma hora para outra? Ao contrário. Se não tiver Copa, o Brasil vai ter de pagar uma multa tão gigantesca que aí é que não vai ter nada mesmo. A Copa vai gerar centenas de milhares de empregos. Bilhões de reais serão movimentados. Espera-se uma multidão de turistas. Será uma festa para o comércio, para os restaurantes, botequins, motoristas de táxi, amublantes de cerveja. Todo mundo será beneficiado.
Com relação ao “não vai ter Copa”, acha que esta insatisfação tem alguma razão de ser? Li que gastamos R$ 500 milhões (valores atualizados) em 50 e agora são quase R$30 bi.
Há uns três anos, fui dos primeiros a denunciar os poderes de Estado invasor da Fifa, principalmente no Rio, em minha coluna na Folha. Parecia
que ninguém estava se importando. A partir de junho do ano passado, tudo virou motivo para protesto, e a Copa era um alvo fácil. Por que não
começaram a protestar mais cedo?
Ainda com relação a isso, acha que o surto cívico vai pegar nesta Copa, como de certa forma aconteceu em outras Copas, ou pode haver mais indiferença?
Se o Brasil começar a jogar bem e vencer, o povo vai aderir à seleção e deixar a minoria que não quer Copa falando sozinha. Mas, se fracassar…
O que foi feito de nosso complexo de vira-lata a essa altura, em sua opinião?
Nunca o Brasil encarnou tanto o complexo de vira-lata quanto atualmente. E, de certa maneira, nunca nos deu tantos motivos para isto.