Lições da Copa de 50
24/05/14 20:37Um clima de euforia com a Copa entre a população e na imprensa. Nada de greves dos motoristas de ônibus, policiais ou garis, muito menos protestos na rua. Raríssimas críticas ao uso de verba pública (100%) na construção dos estádios. E um ‘padrão Fifa’ de exigências que não ia muito além das condições do gramado, dimensões do campo, alambrado, área para imprensa e um túnel de saída para o vestiário.
Esta Copa já existiu e aconteceu neste país, há 64 anos. Custou cerca de 59 vezes menos do que a edição atual (R$ 437 milhões, em valores atualizados, para ser mais exato; a de 2014 custou R$ 25,6 bilhões). “É possível traçar um paralelo: se no século passado o evento tinha proporções bem menores, alguns erros se repetem décadas depois” afirma o jornalista Diego Salgado. Junto com Beatriz Farrugia, Gustavo Zucchi e Murilo Ximenes, ele escreveu “1950 – O Preço de uma Copa” (editora Letras do Brasil), que radiografa como o país se preparou para a quarta edição do evento.
O ponto de contato entre as duas Copas está no improviso e no atraso na entrega das obras. Um exemplo: Porto Alegre e Recife foram escolhidas como cidades-sede a poucas semanas do evento. Outro: na festa de abertura de 50, no Maracanã, os andaimes ainda não haviam sido retirados das arquibancadas. Embora a escolha do Brasil tenha sido homologada em 46, a construção do estádio só iniciaria dois anos e meio depois.
Havia uma disputa política em torno do novo estádio no Rio. Carlos Lacerda o queria em Jacarepaguá. O prefeito da época, Mendes de Moraes, defendia o Maracanã. Qualquer semelhança com a novela do Itaquerão não pode ser mera coincidência.
Contudo, a construção do Maracanã, e a realização da Copa como um todo, era acima de tudo motivo de orgulho e ponto de honra entre os brasileiros. Diferentemente das duas décadas anteriores, marcadas pela quebra da bolsa em 29 e a eclosão da Segunda Guerra, o clima era de esperança.
“Naquele momento havia uma vontade de afirmação do Brasil, em um contexto de industrialização e crescimento econômico do governo Vargas (30-45)”, explica Daniel de Araujo dos Santos, professor do curso Clio Internacional de pós-graduação e especialista em futebol e relações internacionais.
“O povo brasileiro queria mostrar seu valor e isso era evidente entre ricos e pobres. Os operários queriam mostrar que tinham construído o maior estádio do mundo, que era o Maracanã na época”, acrescenta. Em suma, o povo se sentia parte da festa. Até porque, com um salário mínimo da época, dava para comprar vinte ingressos para os jogos da Copa.
O futebol, que naquele tempo era chamado de “football” (e os craques eram chamados de “cracks”), vinha de uma trajetória de ascensão. Ainda dividia com o turfe as páginas dos jornais, mas com sua profissionalização, em 33, proliferavam as praças esportivas no país. Por isso a imprensa fazia campanha maciça pela construção de novos estádios. Os que havia já estavam ficando pequenos demais para o público interessado, que cada vez mais crescia.
É bom lembrar que a Copa de 50 foi realizada em seis cidades-sede, e 13 seleções. Agora, são 32 seleções e doze sedes. E quanto às obras de infra-estrutura, elas simplesmente não existiram. Ou melhor, foi feito o alargamento de uma avenida e as mãos de algumas ruas foram invertidas, no entorno do Maracanã.
Em 42 e 46, não houve Copa. Com a Europa devastada pela Segunda Guerra, nenhum país do continente demonstrava interesse ou condições financeiras para sediar o evento. Os olhos da Fifa então se voltaram para a América do Sul. Em uma disputa política envolvendo a CBD (antiga CBF), a AFA (federação argentina) e a Fifa, o Brasil foi escolhido. A Argentina acabou boicotando o campeonato. Se não o fizesse, a história do Mundial talvez tivesse sido outra. Naquela altura, junto com o Uruguai, o escrete argentino dividia a hegemonia no continente.
Em uma análise mais detalhada sobre a cobertura dos jornais da época, encontram-se alguns poucos artigos sobre os problemas da organização no decorrer do evento. Escassez de hotéis e restaurantes no Rio de Janeiro. Filas gigantescas para os ingressos dos jogos do Brasil. Superlotação do Maracanã, fazendo com que todos assistissem a um jogo em pé.
Em texto intitulado “A Tomada da Bastilha”, o cronista de ‘O Globo’ relata a invasão dos torcedores no jogo entre Brasil e Espanha: “As cenas que antecederam o início do ‘match’ foram realmente históricas. Pagando ou não pagando, o povo entrou, e estava sendo comprimido de encontro às grades de ferro, que agora sabemos, não podem oferecer grande resistência. Nada foi respeitado. Havia gente pelos corredores, entre as cadeiras, em cima das cadeiras, em cima dos braços das cadeiras, enfim, não foi deixado um espaço vital sem ocupante”.
Impossível escrever sobre 50 sem passar pelo ‘Maracanazo’. 10% da população carioca estava no estádio. Imperava a cantoria de músicas e marchinhas de carnaval improvisadas no contexto do futebol. Até que veio o silêncio.
Conta José Sergio Leite Lopes, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em “Brasil em Jogo” (editora Boitempo), que acaba de ser lançado, que “quem demonstrou fair play e civilidade foi a platéia, que permaneceu no estádio até a premiação da equipe vencedora, apesar da tristeza”.
Mas não foi só civilidade. Na saída, uma turba furiosa destruiu o busto do prefeito da cidade, que ficava na entrada do estádio, em uma ação “entendida como uma usurpação política de um sentimento esportivo maior”, de acordo com Leite Lopes.
Na semana que antecedeu a final a seleção treinou no estádio de São Januário e recebeu visitas de políticos ilustres, entre os quais o presidente Dutra. O clima de “já ganhou” era predominante. Naquele ano, como neste, havia eleições presidenciais em outubro. Dutra não conseguiu emplacar seu candidato, Cristiano Machado, e Getúlio Vargas, que encarnava o espírito trabalhista, venceu.
Flávio Costa, técnico da seleção, concorria a deputado. Também não venceu.
Para Daniel de Araujo dos Santos, é difícil estabelecer uma relação direta entre o resultado da Copa e das eleições. “Vargas era um líder popular e carismático, e sempre esteve associado ao nacionalismo. Sua chance de ganhar a eleição era muito grande, mesmo se o Brasil vencesse”.
PACAEMBU
Glória do futebol paulista, jóia da arquitetura art déco, o estádio foi inaugurado em 40. Três meses depois, a prefeitura anunciou que seriam entregues cinco novos viadutos para suprir o aumento de circulação em torno do estádio: viaduto do Pacaembu, Itororó, Jacareí, Luiz Antonio e Nove de Julho.
Segundo Diego Salgado, logo após o anúncio da Fifa de que o Brasil sediaria a Copa, os jogos no Pacaembu já eram dados como certos. E como o estádio era novo, não foram necessárias grandes reparações.
A 23 dias do Mundial, no entanto, delegados da Fifa indicaram que o estádio paulista não se encontrava em condições totalmente satisfatórias, e exigiram aumento da extensão do gramado e ampliação das cabines para a imprensa. A qualidade do gramado também foi colocada em xeque, o que acabou gerando questionamento dos jornais na época: por que os preparativos não haviam sido antecipados?
O estádio recebeu seis jogos. Um deles do Brasil, contra a Suíça. Terminou empatado, em 2 a 2 (público de 42 mil pessoas). A rixa entre paulistas e cariocas era grande, à época. E a base da seleção era o time do Vasco da Gama. Em uma jogada marqueteira, o técnico Flávio Costa decidiu colocar em campo vários dos reservas paulistas.
Segundo Daniel de Araujo dos Santos, apesar disso a recepção à seleção foi menos calorosa, e assim a cidade ganhou a fama de “pé frio” entre os cariocas.
O público costumava comparecer ao estádio em trajes semiesportivos, de camisa e calça, algumas vezes até de paletó.
O Pacaembu também recebeu o jogo entre Uruguai e Suécia, que classificaria a seleção celeste para a grande final. Até os 32 minutos do segundo tempo, o Uruguai perdia por 2 a 1. O jogo terminou com vitória dos celestes por 3 a 2, em um terrível prenúncio do que aconteceria no jogo final.