Fortaleza vive 'boom' do turismo sexual
18/06/14 08:26Terça-feira, uma da madrugada, no entorno da Arena do Castelão, palco do jogo do Brasil contra o México, fruto de um investimento de R$ 518 milhões. A apenas três centenas de metros da entrada para convidados da FIFA, encontra-se o travesti Chiara, de 20 anos, vestido com um colã preto e de crucifixo: “faço programa desde os 12. É muito ruim no começo, mas depois você acostuma. E ninguém passa fome”.
Há quem cobre R$ 10 pelo programa. Chiara cobra R$ 50 – “mais barato que o ingresso para a Copa”, afirma, entre risos-, e comemora a chegada do evento: “o movimento aumentou e eu amo os gringos, quem sabe me caso com um deles e vou morar lá na Europa”.
De acordo com a contabilidade de Lídia Rodrigues, que coordena o colegiado de uma rede de ONGs contra a exploração sexual, o número de crianças e adolescentes que oferecem seus corpos nesta região da cidade cresceu mais de 150% nos últimos três anos, com a demanda dos operários do estádio: eram cerca de 100, hoje não são menos de 250.
Não é recomendável caminhar por estas vizinhanças, ao menos quando não é dia de jogo. Há várias favelas no local colaborando com o alto índice de homicídios de Fortaleza, que colocam a capital cearense no sétimo lugar entre as cidades mais violentas do mundo, de acordo com a ONU.
A meia hora de distância, em uma confortável viagem de carro pelas pistas ampliadas da avenida que liga o estádio ao centro da cidade, está a praia de Iracema, ponto preferencial da prostituição de luxo na cidade. Claro que há famílias e crianças pelo calçadão. Mas nos bares perto da estátua de Iracema, hordas de torcedores mexicanos ocupam os balcões e as pistas de dança – um cruzeiro com 4 mil deles, maioria homens, aportou por aqui anteontem.
São esperados 350 mil turistas para a Copa, de acordo com a Secretaria de Turismo. “Eu amo as brasileiras, já me apaixonei umas cem vezes desde que cheguei”, afirma Ramón Ortega, 34, engenheiro aeronáutico, em meio a um grupo de amigos, alguns já meio bêbados.
Na esquina, Valeska, 19, uma bela morena de longos cabelos lisos, que cobra R$ 200 o programa, afirma: “que medo desses gringos! Mas nunca fui mal tratada, e em uma noite ganho o salário de uma balconista. Mudar pra que?”. Valeska conta que já morou três anos na Europa, que conhece “a Itália inteira”.
Na Copa do Mundo das garotas de programa, países nórdicos e holandeses aparecem entre os campeões de preferência. Espanhóis e alemães empatam. Italianos ficam na repescagem. Latinos como os mexicanos ou uruguaios, que vieram assistir o jogo contra Costa Rica na semana passada, são como os brasileiros.
Por mais que as autoridades tenham lançado um plano de convergência, com 700 pessoas envolvidas, reunindo assistentes sociais, delegacias, juizado e um plantão 24 horas com todo aparato da Justiça, além de campanha publicitária, Fortaleza vive um ‘boom’ do turismo sexual. E a exploração de crianças e adolescentes pode ser vista a olho nu, por vários cantos.
Os donos de boate comemoram o movimento, há quem diga sem precedentes na história da capital cearense, que, envolta no lema dos 300 dias de sol por ano e suas praias maravilhosas, sempre foi apontada como um dos principais destinos internacionais do turismo sexual no mundo.
Há mais policiamento nas ruas, e apoio de três mil homens do Exército. Na hora do jogo, em plena Fan Fest da FIFA, que contou com cerca de 30 mil pessoas e show de Michel Teló, a garota de programa Yara, de Belém, elogiava: “é bom porque a gente se sente mais segura para trabalhar”, emendando, “tomara que o Brasil faça logo os seus gols pra ter festa”.
Yara estava acompanhada de um holandês no camarote do evento, cujo ingresso custa 100 reais. Assim como algumas outras garotas de programa -não havia várias, mas também não havia poucas-, ela diz que foi convidada pelo parceiro. “É como um namorado. A gente passa a semana com ele, que às vezes nos ajuda financeiramente”, comenta Marly, que estava com um uruguaio.
Um mês antes da Copa oito boates tradicionais da cidade foram fechadas, muitas delas sob acusação de exploração sexual. O plano de convergência, que deve vigorar apenas durante a Copa, ainda conta com três centros de acolhimento de crianças e adolescentes em dias de jogos.
“Muitos pais deixam as crianças livres para assistir os jogos. Por isso os orientamos a deixarem elas conosco. Nos centros de acolhimento temos psicólogos e atividades lúdicas”, explica Tânia Gurgel, do Fundação da Criança e da Família Cidadã, da Prefeitura. “Não é a situação ideal, mas estamos procurando fazer o melhor”, afirma Tânia.
Para Alice Oliveira, coordenadora interina da associação das prostitutas cearenses, “a cidade foi mascarada para receber os turistas em época de Copa. Muita gente foi retirada da rua, especialmente onde há mais circulação de turistas”.
Mesmo fora da temporada da Copa, segundo ela a exploração continua acontecendo com a mesma intensidade de sempre, mas mais camuflada. “Com o aperto da fiscalização sobre hotéis e motoristas de taxi, muitos estrangeiros compraram casas e apartamentos. Os encontros pela internet estão bombando. É comum encontrar as meninas no aeroporto carregando uma plaquinha com o nome do passageiro”.
Contando com uma população de 2,5 milhões, Fortaleza dispõe de apenas seis conselhos tutelares, a maior parte deles sucateados. Os índices de violência contra a mulher também são espantosos. De acordo com reportagem publicada recentemente pelo jornal francês Le Monde, a cada mês, cerca de mil casos são identificados. No Norte e Nordeste, a cidade ocupa o terceiro lugar na escala de assassinato de mulheres. Ceará também é o segundo Estado em termos de estupro.
Das 246 rotas de tráfico humano identificadas no Brasil, 96 passam pela região.
Gloria Diogenes, socióloga da Universidade Federal do Ceará, e ex-secretária municipal de direitos humanos, fala sobre os sentimentos capitais de quem pratica a prostituição infanto-juvenil: negligência, abuso, raiva e nojo, misturados a um sentimento de liberdade e esperança de encontrar um príncipe encantado que fará a garota mudar de vida. “A maior forma de violência é a família. Os abusos são muito comuns, e a cultura machista ainda é muito forte”.
Fome, seca e miséria também fazem parte deste contexto. Muitas chegam do interior.
De acordo com Gloria nunca houve uma política pública de longo prazo para coibir o problema. Uma das principais dificuldades é a indústria de falsificação de documentos. Já foram feitas seis CPIs sobre o tema. Recentemente, Dilma sancionou lei que transforma exploração sexual em crime hediondo.
“Fizeram uma assepsia social na área turística da cidade para não ficar a olho nu. Fortaleza é um lugar onde o abismo social só se acentuou, com o crescimento econômico”, diz Gloria.
Segundo a Unicef, o número de crianças e adolescentes envolvidos com prostituição cresceu de 100 mil em 2001 para mais de meio milhão em 2013, no Brasil.