Loucura, arte e crítica
24/06/14 11:42Por Tracy Segal
Numa Copacabana que parecia uma volta no tempo, chego num prédio art déco onde o porteiro ouvia rádio AM com histórias policiais. Ferreira Gullar abre a porta de seu apartamento e vejo uma infinidade de obras de arte e livros. Alguns de sua autoria, como umas colagens que denomina de “Revelação do avesso”, uma técnica desenvolvida por ele, que consiste em recortes de papel em que o avesso é revelado ao ser dobrado, gerando formas geométricas que mostram uma nova textura ou padrão.
Conversamos sobre loucura, arte e crítica. Do movimento antimanicomial, que defende a desinstitucionalização da psiquiatria, onde se evita a internação ou até mesmo se erradica os asilos para doentes psiquiátricos, ao trabalho pioneiro de Nise da Silveira (1905-99), utilizando a arte como terapia e o processo criativo do artista. Por fim, chegamos a um tema recorrente em seus escritos: a mercantilização da arte contemporânea.
O poeta teve dois filhos com quadro de esquizofrenia, e é extremamente crítico ao movimento antimanicomial. Em sua coluna na Folha em 16 de fevereiro deste ano, ao se deparar com a trágica morte de Eduardo Coutinho pelo filho num surto esquizofrênico, declarou: “Como pega bem mostrar-se avançado, aberto, antirepressivo, muita gente não apenas nega que a loucura seja doença como, coerentemente, se opõe à internação nos chamados “manicômios”. Criaram até um movimento que se intitula “antimanicomial”, que visa, de fato, acabar com as clínicas psiquiátricas, uma vez que o que se chama de manicômio não existe mais.”
Gullar acredita ser um equívoco esta nova política, implementada a partir da reforma psiquiátrica em 2001, que fechou milhares de leitos que atenderiam as pessoas pobres, porque, segundo ele, os ricos acabam internando nas clínicas particulares, que aliás são muito caras.
Ferreira Gullar é um dos maiores poetas vivos, autor do célebre “Poema sujo”. Liderou o movimento neoconcreto, é ensaísta, crítico de arte, tradutor, roteirista e artista plástico.
“A arte existe por que a vida não basta.”
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Como inserir o esquizofrênico na sociedade?
Isso é muito complexo. Eu não conheço nenhum remédio que cure a esquizofrenia. Existem remédios que mantêm a pessoa num certo equilíbrio e evitando o surto. Estes remédios foram uma grande mudança em todo o processo de tratamento psiquiátrico.
O que se chamava de manicômio era uma coisa muito atrasada que envolvia até espancamento do doente. Ele ficava aprisionado em celas, tomava choque elétrico. Tudo isso caracterizava o antigo tratamento psiquiátrico. Mas ninguém fazia isso por crueldade.
Bolonha, cidade onde foi inventado o movimento antimanicomial, ficou cheia de mendigos. Quando a pessoa entra em surto não tem o que fazer a não ser internar, por que assim ela fica protegida. Ela pode se jogar ou agredir, como o filho do (cineasta) Eduardo Coutinho. E depois cair em si. Não tem lógica.
Qual a importância de Nise da Silveira nesse contexto?
Eu conheci a dra. Nise e trabalhei com ela. Ela introduziu os trabalhos manuais de pintura e de cerâmica no tratamento. E isso foi muito importante porque o doente mental, em geral, tem muita dificuldade de se expressar verbalmente, porque a própria doença leva o cara a um delírio, sem lógica, e muitas vezes há doentes que nem conseguem falar. As contradições que se formam na cabeça dele impedem que ele formule a fala, a linguagem oral, o conflito da lógica do pensamento com a doença. No caso da pintura e do trabalho artesanal, isso é superado porque quando você vai pintar um quadro não tem que ter a lógica verbal, linguística. Você está se exprimindo com cores e formas, num mundo que está criando ali e isso é muito saudável. Muitos doentes se envolveram neste trabalho, alguns até numa situação gravíssima como o Emygdio de Barros, que estava 25 anos sem falar. Não curou, porque não tem cura. Passou a falar e a ser mais feliz por que ele criava uma coisa que as pessoas gostavam. Ele se ocupava de uma coisa prazerosa e criativa.
Arte e loucura se cruzam em algum ponto? Você conta que teve um momento do colapso da linguagem em sua escrita poética.
Na minha experiência não há semelhança. Quando eu tive o colapso, partiu de uma visão objetiva dos problemas linguísticos e poéticos. No meu trabalho como poeta eu descobri num determinado momento que a linguagem não era apropriada para expressar o que eu queria. Eu dizia: a linguagem é velha. Ela preexiste a experiência poética e a experiência poética é uma coisa nova, é uma descoberta. Então eu expresso a descoberta nova com uma linguagem velha.
Essa ideia que me pareceu viável na época, me conduziu a um impasse. É claro que o poema que eu escrevi não é integralmente uma linguagem nova, mas a tentativa extrema de fazer. Ele tumultua a lógica da linguagem, cria palavras incompreensíveis. Mas eu não queria escrever para ninguém entender.
Ao mesmo tempo, eu não podia voltar atrás e escrever como antes.
Para retomar a linguagem foi uma dificuldade, eu terminei escrevendo um livro, que ficou 30 anos inédito, que é “Crime na flor ou ordem e progresso”, um livro praticamente sem sentido. Comecei escrevendo a mão num caderno sem saber o que ia escrever, deliberadamente sem sentido. E foi ganhando sentido à medida que ia escrevendo, mas um sentido contraditório.
Existe essa fantasia da proximidade da arte e a loucura?
Não tem nada a ver. Isso precisa ser esclarecido. Loucura não cria arte. Quem cria arte é artista. O Emygdio é pintor por que ele é artista, não por que ele é doido. No Engenho de Dentro [Instituto Psiquiátrico Municipal] tinha dezenas de pessoas no atelier de pintura e só cinco se tornaram realmente reconhecidos como artistas. Não é loucura que cria arte. O que cria arte é o talento do artista.
Qual a função da crítica de arte?
Hoje praticamente não existe crítica de arte, não existe arte. O cara bota quatro urubus dentro de uma gaiola [obra “Bandeira Branca” de Nuno Ramos]. O que que o crítico vai dizer? Invés de quatro urubus deviam ser cinco?! Esse urubu está ótimo?! Vai dizer o quê? Então a crítica inventa uma teoria para justificar aquilo. O outro pega um cachorro e deixa morrer de fome e sede, na galeria de arte, se fosse no quintal dele não era arte. A crítica vai dizer o que? Que ele devia matar mais depressa? Isso não tem nada a ver com arte. Então a crítica de arte acabou. Só existe quando o crítico decide falar do Picasso ou falar da obra do Milton da Costa ou da Maria Leontina ou do Cubismo, aí ele vai falar de arte. Mas arte contemporânea…
Casais nus no MOMA [performance de Marina Abramovic] não foi o artista que fez. Teve uma boa ideia. Boa ideia pra mim é a caninha 51. Não basta ter boa ideia, tem que ter a capacidade criativa.
Existe na arte contemporânea, algumas poucas coisas interessantes.
Mas no geral, ela prejudicou a criatividade dos artistas verdadeiros, os pintores, que não têm vez. Hoje pra você conseguir uma galeria para expor quadros, esculturas, é uma dificuldade.
As artes plásticas viraram um bolsa de valores e ao mesmo tempo os artistas tendem a querer criticar o mercado.
É tudo de mentira. Por que eles são só mercado. Por que essa arte contemporânea consiste em se tornar famosa e vender qualquer coisa. Eles não vendem os urubus. Alguém vai comprar uma gaiola com urubus dentro. Mas isso sai no jornal, o cara fica famoso e vende desenho. Qualquer coisa que ele faça vende. Isso é o próprio mercado. Fazer publicidade para vender um produto. Só que ao invés de colocar anúncio na TV ele faz isso.
Você acha que o Marcel Duchamp detonou isso?
Não que ele seja culpado, mas foi quem deflagrou. Ele próprio não se deteve nisso. Ele pegou o urinol, assinou e mandou para uma exposição e chamou aquilo de ready made, que quer dizer ‘feito pronto’. Ao mesmo tempo ele fez o grande vidro que levou 8 anos e a última obra dele, o “Étant donnés”, levou 20 anos. Tá feito como? “Étant donnés” é uma obra nova, surrealista, de muita fantasia e muito bonita.
E o Andy Warhol?
Ele também tem coisas criativas. Outro dia, numa exposição dele tinha um retrato do cara que era perfeito… ele tinha o talento de fazer. Muitas coisas eram mera irreverência, que acabaram virando símbolos do movimento. Lata de sopa… claro que fica só isso na nossa época da mídia, da popularidade. Claro que aquilo não tem expressão nenhuma do ponto de vista da criatividade como outros trabalhos dele.
Não é um trabalho crítico?
Tem uma coisa que é contra a mercantilização. Há uma visão crítica disso também. Mas na verdade é contraditório, por que ele tá vendendo também. Não vou exigir coerência extrema porque as coisas são contraditórias. O que eu exijo do artista, é que ele tenha talento e crie coisas que realmente sejam criação, venham a enriquecer a vida. Eu costumo dizer que a arte existe por que a vida não basta. O que vem a enriquecer a vida é o que vale. Agora, fazer alguma coisa que vai empobrecer a vida? Botar cocô na lata?!
É cínico?
É uma bobagem. Isso é contra a arte. É contra a vida. Ser contra a arte é ser contra a vida. Isso é uma besteirada. Mas aí a crítica inventa argumentos para justificar este tipo de coisa. Por que a crítica faz isso? Porque ela não quer ser atrasada. Ela tem que ser tão vanguardista quanto o artista.
Os curadores se tornaram os artistas neste contexto?
Sim, o artista hoje é o curador. E o que sustenta isso são as Bienais. Quando eu vi a segunda Bienal de São Paulo, que tinha centenas de obras de arte, pensei: se faz tanta obra de arte assim? E daqui a dois anos terão outras centenas? Então o artista passou a fazer arte para a Bienal. A obra dele é um evento.
Ele tem a obra pra vender e a obra para expor?
Teve a Bienal do vazio. Eu disse: claro! Essa sim, é a expressão, por que o que eles expõem não é arte mesmo. É uma perda de sentido, que é uma coisa grave.
A arte nasceu com o ser humano, nas cavernas. É uma coisa do ser humano. Meus netos com 3 anos já estão desenhando. E desses, alguns têm talento e transformam aquilo no seu instrumento de invenção da vida, de criação da vida. Os artistas são isso. Se você destruir isso fica o que? A arte agora acabou, nesse caminho é o fim da arte.
No começo do século 20 houve vanguarda em todas as formas de expressão. Na pintura, na escultura, no desenho, na música, na literatura, no teatro.
Hoje, os caras continuam escrevendo romance, criativo… mas é romance. Os poetas continuam escrevendo seus poemas, os músicos continuam fazendo música… Só nas artes plásticas é que deu esse negócio. E as bienais têm um papel nisso.
A “bolsa de valores” das artes plásticas não existia?
Tinham as exposições. Você tem razão. Mas o que eu estou querendo dizer, é que o fator principal, é que se chegou a uma atitude do vale tudo, não é preciso fazer a obra. Duchamp disse: será arte tudo que eu disser que é arte, mas ele não seguiu isso. O Volpi para fazer um quadro leva uma vida inteira para escolher, criar suas cores… Agora, pegar e colocar 6 casais nus no museu…
Arte é profissão?
Não. Pode até ser, mas não é só profissão, como as outras. Os verdadeiros artistas não são isso. Mesmo que eles não vendessem, continuariam. O verdadeiro artista tem necessidade de criar a coisa, aquilo é vital pra ele, ele inventa a vida dele através daquilo.