O Irã que você não conhece
30/07/14 10:54A construção da imagem da nação iraniana aos olhos do brasileiro e, em mais larga escala, do ocidental, vem sendo tecida a partir de três perspectivas.
Em primeiro lugar o noticiário, focado no regime linha-dura conservador. Das já clássicas fotografias da bandeira americana sendo queimada em praça pública, às declarações estapafúrdias do ex-presidente Mahmoud Ahmadinejad, por exemplo questionando a existência do Holocausto, ou passando pelo apoio e alinhamento ao governo sírio contra os insurgentes, e a instituições como o Hamas na Palestina, e o Hizbollah no Líbano.
No plano da literatura, alguns best sellers internacionais, como “Persépolis” ou “Lendo Lolita em Teerã”, escritos por iranianos no exílio, relatam as agruras e privações de uma sociedade secular tentando sobreviver aos desígnios de uma revolução religiosa que impôs um código moral de costumes inspirado na leitura do Islã sob a ótica xiita.
E o cinema, feito de parcos recursos, mas que através de uma narrativa própria e sofisticada conseguiu contornar os censores e nunca se furtou de expor as mazelas do país, criando uma legião de admiradores pelo mundo. Diretores como Abbas Kiarostami, Mohsen Makhmalbaf e Jafar Panahi – este último condenado a prisão domiciliar desde 2010 -, fazem parte do primeiro time de qualquer festival internacional. Mas nenhum filme iraniano ganhou tanta projeção como “A Separação”, vencedor do Oscar de 2012, trazendo como pano de fundo as distorções de um sistema judicial teocrático, autoritário e machista.
“Os Iranianos” (editora Contexto), de Samy Adghirni, que trabalhou como correspondente desta Folha em Teerã por dois anos e oito meses, agrega frescor e lança uma luz sobre a complexidade que marca esta sociedade em transformação, etnicamente diversa e multifacetada.
Como diz o próprio autor, o objetivo “é pegar o leitor pela mão e lhe apresentar um país sobre o qual ele ouve notícias quase todo dia, mas não necessariamente o conhece”. Com uma linguagem leve e claro propósito de didatismo, o livro é uma imersão na vida cultural, política e econômica do Irã.
Inevitavelmente, uma imensa gama de contradições desponta de suas 218 páginas. O Irã ostenta IDH superior ao Brasil (76 no ranking mundial, o Brasil está em 85), um atendimento de saúde pública funcional e um sistema de ensino extremamente competitivo e elitizado. A taxa de analfabetismo é baixíssima e o nível de instrução da população vem sendo saudado pela ONU.
O país possui sólida tradição histórica, remontando ao império persa, que um dia ocupou as fronteiras que vão do atual Afeganistão à Grécia. Até hoje, ecos desta tradição se fazem sentir, a começar pela língua falada, o farsi, que pouco tem a ver com o árabe dos vizinhos. Berço de religiões seminais como o zoroastrismo, ou de grandes poetas como Hafez e Omar Khayyam, o país tem repertório cultural vasto, sendo considerado um dos mais refinados da região.
“O contraste maior é entre um regime anacrônico, em defasagem total com a maior parte da população, não apenas a classe média alta, que enxerga nele uma loucura ideológica absurda e ridícula. Por isso na esfera privada as pessoas vivem uma outra vida”, diz Adghirni.
A ‘outra vida’ consiste em desacato ao jejum do Ramadã, mesmo que seja comendo biscoito no banheiro. Ou o consumo de bebidas alcoólicas, apesar da proibição do regime. Driblando os bloqueios da internet. Em certo aspecto, a cultura americana, abominada pelo regime, é admirada pelos seus cidadãos, ressalvada a política externa, considerada por quase todos como sendo intervencionista.
De acordo com Adghirni o Irã talvez seja o país de maioria muçulmana com menos ódio antissemita – os inimigos históricos são os árabes, que consideram bárbaros. Eles são os responsáveis pela invasão islâmica, que data do século VII.
Talvez o status da mulher no Irã é o que melhor simbolize estas contradições. Por trás das restrições impostas a elas, existe um protagonismo que as coloca entre as mais emancipadas do Oriente Médio. Elas são obrigadas a usar o véu, andar na parte de trás do ônibus, e na esfera legal ainda são muito desfavorecidas.
Mas é comum namorarem antes do casamento, votam e são eleitas, e trabalham livremente, em todas as áreas, ocupando cargos de liderança. No Irã de hoje as pessoas casam mais tarde e têm menos filhos, aproximando o país do padrão europeu de crescimento demográfico.
Quase três décadas de sanções econômicas emperram um tanto as possibilidades econômicas do país. Os agentes de repressão e a polícia moral andam às soltas. Há muita corrupção no governo e o controle político é exercido com mão de ferro pelo líder supremo, o aiatolá Ali Khamenei.
Mas “Os Iranianos” enfim, ajuda a desfazer a imagem de uma sociedade religiosa e anacrônica que muitos poderiam supor verdadeira, a julgar pela leitura superficial que as notícias sobre este país poderiam inspirar.