Gaza: a gênese de um conflito
04/08/14 13:22Por Tracy Segal
A gênese do confronto em Gaza, que absorve a atenção em proporções planetárias, tem um fio que remete ao nascimento do nacionalismo, e do movimento sionista em consequência ao não-pertencimento do povo judeu a nenhuma das jovens nações de uma Europa do século 19.
“Como resultado do antissemitismo surge o movimento sionista, e como resultado do movimento sionista, temos uma população palestina sendo deslocada em 1948.”
Em entrevista a este blog o professor James Gelvin, do departamento de história da UCLA, pesquisador de história sócio-cultural moderna e contemporânea do Oriente Médio, expõe um panorama deste conflito que segundo ele ainda terá vida longa. Este jogo complexo, onde os três principais protagonistas são Israel, Palestina e o Egito, tem muitas entranhas e pode ser considerado a mais longa batalha viva por terra.
No combate midiático Israel perde popularidade numa luta com uma entidade múltipla como o Hamas, uma entidade com inúmeros braços e diversos objetivos, muitas vezes contraditórios.
“O Hamas estava enfraquecido por conta da queda do governo da Irmandade Muçulmana no Egito. E não há nada para unir mais o povo do que entrar em confronto com Israel, ainda mais com Israel fazendo o que está fazendo na Cisjordânia”.
“Não existe fim de jogo para Israel. Eles querem degradar o Hamas, mas não querem destruir o Hamas. Eles querem alguém lá para administrar as coisas. Existe um padrão que a cada 2 anos eles entram em Gaza porque alguém lançou um míssil ou um soldado é sequestrado, e degradam a capacidade militar, destroem os mísseis e lançadores, matam pessoas e tudo isso. Depois saem. Então 2 anos depois eles voltam. Isso aconteceu em 2006, 2009, 2012, 2014. É um padrão.”
Com relação ao incidente diplomático envolvendo o Itamaraty e a chancelaria israelense, ele diz: “Foi completamente descabido, por parte do governo israelense, chamar o Brasil de ‘anão diplomático’. Agora, o que os países latino-americanos estão fazendo não causará efeito algum”.
Como posicionar esse conflito num contexto histórico?
Se trata de uma batalha nacionalista. É uma luta pela terra. Um confronto simples e quintessencial, comum. O que o diferencia, é que é o mais longo confronto por terra que presenciamos.
A maior parte do confronto acontece durante a Guerra Fria, quando Israel e seus inimigos eram usados pelos EUA e pela União Soviética, manipulados de várias formas para aumentar a força americana ou soviética nesta região. O que tornou qualquer reconciliação impossível. E isso acontece no meio do século 20 quando não se pode mais exterminar uma população inteira. Você tem uma população nativa da região que insiste no direito de retornar às suas casas, e no direito de participar das decisões políticas deste processo que levaria à criação deste novo Estado. Esses são provavelmente os dois principais motivos pelo qual esse conflito não acaba.
Os resultados da guerra de 1967 (Guerra dos 6 dias), é que do lado dos palestinos vemos o nascimento da Organização pela Libertação da Palestina (OLP) moderna, que surge junto com diversos outros movimentos de libertação nacionalistas ligados ao culto da violência armada, que acreditavam que a libertação viria através do poder das armas. Eles continuaram o conflito desta forma, o que não envolve a população palestina, e também não foi muito eficaz em destruir o inimigo.
Também em 1967 começa a expansão dos sonhos de muitos sionistas dos primeiros tempos que agora poderiam ser realizados pela primeira vez. Eles agora têm posse da Cisjordânia, de Gaza, por que não expandir, não colocar os assentamentos, por que não controlar toda a Palestina? São estes fatores que garantem que o conflito vai durar muito tempo.
Tudo começa com o movimento sionista?
Bastante. O holocausto foi algo difícil para o movimento sionista resolver. Os judeus deveriam se mudar para a Palestina por que os judeus da Europa estavam enfraquecidos e foram degradados por anos vivendo como minoria sem a dignidade que os seres humanos devem ter.
O holocausto provou que o movimento sionista estava certo, de várias formas. O holocausto se tornou a grande pedra de toque para o movimento sionista, ou seja, eles se referem a isso para afirmar que precisam de Israel, por que se não existir Israel um novo holocausto pode acontecer, ou merecem Israel por causa do holocausto. Então a narrativa na qual o holocausto se inseriu mudou várias vezes na história.
Não pense no sionismo como uma coisa, mas como várias coisas. É múltiplo como qualquer nacionalismo, com diversos pontos de vista, interpretações. Existem os sionistas seculares, os sionistas religiosos, os sionistas revisionistas – que não ficarão felizes enquanto não controlarem toda a área do Mediterrâneo até o rio Jordão – e o sionismo trabalhista mais preocupado com questões sociais dentro da comunidade judaica.
Na Palestina porém, antes da Segunda Guerra, a direita, que mais tarde se tornaria o Likud, partido da extrema direita em Israel, se tornou mais poderosa por causa da imigração. Sendo esta imigração resultado das leis antissemitas na Europa. Essas pessoas eram em parte refugiados políticos ou econômicos, e muitas vezes não eram sionistas, só precisavam de um lugar pra ir e acabaram na Palestina, mas a maioria entrou para os partidos de direita burgueses que estavam se formando e encontraram um herói em Vladimir Jabotinsky, que foi o fundador da ala revisionista do sionismo. Ele se tornou um herói para esse povo, por que ele se opôs ao grupo socialista, ao Partido Trabalhista. Ele deu suporte aos burgueses que não eram socialistas. Foi quando a direita ganhou coesão na Palestina.
Podemos dizer que em consequência ao antissemitismo na Europa os palestinos pagaram a conta?
É mais do que só resultado do antissemitismo na Europa. Quando você diz antissemitismo você está olhando para a Segunda Guerra Mundial, mas quando você olha para o nascimento do movimento sionista há motivos para que surja o nacionalismo. Basicamente é porque você se tornou um outro, você não pertence a um grupo. No século 19 nações estavam nascendo, os judeus que eram maioria no Império Russo não poderiam ser russos, teriam que se converter e falar somente russo, o mesmo acontecia em outros países da Europa. Basicamente chegaram à conclusão de que precisavam de um nacionalismo próprio. O sionismo é basicamente a conversão de uma comunidade religiosa em uma comunidade política. Pela primeira vez você tem uma nação judaica. Como resultado do antissemitismo surge o movimento sionista, e como resultado do movimento sionista você tem uma população palestina sendo deslocada em 1948.
Os palestinos sofrem preconceito de todos lados?
Algumas coisas são importantes de serem ditas: foram os próprios palestinos quem, no começo, decidiram que não se misturariam. Existe uma identidade palestina, separada, eles não são sunitas, libaneses ou sírios. Eles são palestinos. Uma coisa que os israelenses falam é que existem 22 Estados árabes, eles são simplesmente árabes, eles podem ir pra qualquer outro Estado árabe. Por que eles precisam deste lugar em particular?
Bom, porque existe uma identificação distinta com este Estado, um nacionalismo palestino. Isto foi mantido vivo para manter a população palestina segregada. Alguns países árabes queriam manter isto por motivos econômicos, competição de empregos e coisas assim. Palestinos podem se tornar cidadãos da Jordânia em alguns casos. No Líbano eles conseguem visto de trabalho, mas só podem exercer determinadas profissões. Eles podem trabalhar na Síria mas não tem benefícios. Mas o que significa benefícios na Síria? (risos)
Existe uma comunidade palestina que ficou em Israel, 20% da população lá hoje é palestina. Mas há discriminação. Dizem que eles podem fazer quase tudo que um cidadão israelense faz, exceto servir ao exército, ou melhor, uma minoria palestina já serviu. É como nos EUA com os negros. Os palestinos estão entre os mais pobres, existe discriminação nas escolas, eles apenas podem residir em certas áreas, não podem formar um partido político – mas todos sabem que o partido comunista em Israel é pela Palestina. Eles estão na camada mais miserável de Israel.
Você acha que Israel tem o poder de resolver esse conflito agora?
Não existe fim de jogo para Israel. Eles querem degradar o Hamas, mas não querem destruir o Hamas. Eles querem alguém lá para administrar as coisas. Existe um padrão que a cada dois anos eles entram em Gaza, por que alguém lançou um míssil ou um soldado é sequestrado, e degradam a capacidade militar, destroem os mísseis e lançadores, matam pessoas, depois saem. Dois anos depois eles voltam. Isso aconteceu em 2006, 2009, 2012, 2014. É um padrão.
O que o governo israelense realmente quer é acabar sem uma vitória do Hamas. Ou seja, eles não querem recompensar o Hamas pelo confronto, pelos mísseis lançados, etc. Mas eles não tem a capacidade de dar um fim sem recompensar o Hamas, ou de qualquer forma que garanta o cessar-fogo. Onde está o segredo? O que o Hamas desesperadamente quer, e repete incessantemente, é um alívio no bloqueio. Eles querem a abertura da passagem de Rafah, mas isto é controlado pelos egípcios. Eles não podem pedir ao israelenses isto, pois depende dos egípcios.
Onde os egípcios estão agora? Eles tem um novo governo que entrou no lugar da Irmandade Muçulmana, e agora eles odeiam a Irmandade Muçulmana e suas extensões – o Hamas é uma delas. Eles odeiam o Hamas, e amam a ideia do Hamas estar apanhando de Israel. Mas por outro lado, os egípcios estão sob pressão interna, e de outros Estados árabes. Seu povo está muito infeliz com o que está acontecendo na Palestina. Surge também uma pressão dos EUA, da ONU, e de outros países para que os egípcios encontrem uma conciliação. Mas a primeira proposta de cessar-fogo egípcia foi um não começo, porque foi idêntico ao de 2012 aceito por ambos. Por que o Hamas não aceitou agora? Porque a parte sobre o alívio do bloqueio é muito ambígua. O que o Hamas quer agora são garantias de que o bloqueio será aliviado, que a passagem de Rafah será aberta, mesmo que não completamente. Mas do lado de Gaza o que o Hamas não quer, é que a Autoridade Nacional Palestina – que está em colaboração com Israel – administre esta passagem. Especialmente agora que as coisas estão começando a virar para seu lado.
Ninguém está falando de Mahmoud Abbas (presidente da Autoridade Nacional Palestina e um dos fundadores do Fatah). Aliás, na Cisjordânia aconteceram vários protestos de apoio ao Hamas, e as forças de segurança da Autoridade Nacional Palestina impediram os protestos de chegar perto de qualquer posto de controle de Israel, ou qualquer lugar que pudesse ser perigoso para Israel, por isso eles estão perdendo popularidade entre os palestinos, e o Hamas está ganhando popularidade com estas atitudes. As coisas estão virando numa direção muito diferente.
Podemos dizer que Israel está perdendo esta guerra midiática?
Sim, inacreditavelmente. Você vê demonstrações em massa pelo mundo contra Israel. Isto é bom e ruim para Israel. É ruim porque é bom ser amigo de todos, mas isso também alimenta a paranóia que já esta lá: “Todos nos odeiam, por isso precisamos de um Estado judeu. Olha estas pessoas protestando contra nós nas ruas de Paris? Todos os judeus precisam vir para Israel, é o único lugar onde ficarão seguros.”
E a interferência dos EUA, da ONU e de outros países?
Nenhum desses países ou organizações têm chances de conseguir um cessar-fogo. Existe uma lógica própria nesse conflito que precisa achar sua saída em si, pelas mãos dos três participantes, incluindo o Egito devido a sua habilidade em responder à maior demanda do Hamas.
Esta não é a primeira vez que os EUA tentam negociar com diplomacia. Pode vir pressão de outros países, mas não um cessar do conflito.
Então a atitude do Brasil e de outros países da América Latina não causa efeito algum? Chamaram o Brasil de anão diplomático em resposta, você soube?
Este é um exemplo de por que Israel não tem muitos amigos no mundo, usar a palavra “anão” é completamente descabido. Agora, o que os países latino-americanos estão fazendo não causará efeito algum.
No século 19 Lorde Palmerston disse: “nações não têm amigos, nações têm interesses.” Agora você pode dizer que o Brasil, o Equador e a Venezuela não são particularmente amigáveis com Israel, mas eventualmente os interesses destes países com Israel vão se encontrar, e então as más relações vão acabar.
Podemos considerar Israel uma economia militar? Existe algum interesse econômico neste conflito?
Não, não é bom economicamente para Israel. Os EUA tiveram que mandar milhões de dólares para o programa Domo de Ferro (sistema de defesa antiaérea que intercepta e destrói mísseis). Temos que dar dinheiro por que eles não têm. Quanto ao complexo industrial-militar em Israel, eles exportam uma grande quantidade de armas, é uma indústria de exportação, para a América Latina por exemplo.
Mas com o fechamento do aeroporto de Tel Aviv, a diminuição no turismo em julho e agosto foi de 30%. Isso não é o grosso da economia de Israel, mas é um prejuízo. Fora os boicotes no mundo. Por outro lado, esse não é um conflito econômico e Israel está contando que com o tempo as pessoas esquecerão o que aconteceu.
Por várias vezes vejo nas notícias o Hamas como um grupo terrorista. No que consiste o Hamas?
Hamas é uma entidade, que é muito semelhante ao Hizbollah. Consiste de várias alas que não cabem numa caixa específica. No ocidente temos ou um partido político, ou uma milícia, ou uma instituição de caridade. Hizbollah e Hamas são as três coisas e mais. Por exemplo, há membros do governo libanês que foram do Hizbollah. Ao mesmo tempo que ele tem um braço militar que opera de forma bastante independente, é a única milícia permitida a operar no Líbano.
Hamas é a mesma coisa. É um partido político que ganhou as eleições para o parlamento democraticamente em 2006. Estão governando em Gaza agora. São também uma milícia que atira foguetes em Israel, lutando contra israelenses. Às vezes eles estão divididos. Existe um braço militar que está contra uma ala política, mas a ala política inclui uma variedade de organizações de caridade que, por exemplo, cuidam do alívio da população palestina. Tem pessoas que estão no governo e outros que não estão. São entidades que preenchem um largo espectro de funções, tanto no Líbano como em Gaza. O motivo pelo qual isso acontece é porque basicamente o governo não funciona em nenhum desses lugares. Então você tem organizações como Hizbollah ou Hamas que funcionam como governos dentro dos governos, que funcionam instituindo ou bem estar social, ou educação ou defesa.
Qual seria uma análise da lógica interna desse conflito?
O confronto começou com uma série de mísseis atirados de Gaza, mas na realidade começou antes disso com o cerco de Israel sobre 500 membros do Hamas para destruir as operações deles na Cisjordânia. Os israelenses querem fazer várias coisas ao mesmo tempo. Agora eles querem destruir o máximo de infraestrutura do Hamas na faixa de Gaza, destruindo os mísseis, os lançadores, os túneis. Os túneis surgiram como uma surpresa para Israel. Eles encontraram nos túneis coisas como cordas, algemas, eles acreditaram que eram para abduções de cidadãos isralenses e para infiltrar pessoas em Israel. Outro objetivo é destruir a reconciliação entre Hamas e a Autoridade Nacional Palestina. Tem havido reuniões entre lideranças da Autoridade Nacional Palestina e o Hamas, eles estão se juntando. Em 2007 eles se separaram completamente. Mas a Autoridade Nacional Palestina tem melhorado nas negociações. Existem pessoas do Hamas que estão infelizes com isso, principalmente o braço militar do Hamas. O que eles temem é que haverá a introdução das forças de segurança de Autoridade Nacional Palestina em Gaza e eles ficarão desempregados.
Não somente Israel é contra a reconciliação, existem grupos no Hamas que também são contra. O que complica é que você está lidando com múltiplos grupos dentro do próprio Hamas.
Então uma reconciliação se torna impossível?
A ideia de reconciliação vem à tona pelo fato de que o Hamas está encurralado, o bloqueio é efetivo e eles se tornaram muito impopulares nos últimos anos, particularmente quando o governo pró-Hamas de Mohamad Mursi no Egito foi deposto pelos generais, dando lugar ao grupo anti-Hamas que mantém fechado o bloqueio da passagem de Rafah.