Haaretz - o que vê quem vê de dentro em Israel
20/08/14 14:54Por Tracy Segal
A blindagem de informações em Israel não se dá por nenhum tipo de censura do governo mas, segundo o editor-chefe do diário Haaretz, Aluf Benn, pelo próprio povo israelense que se mantém dentro de um círculo de interesse de informações. O único veículo a mostrar os dois lados do conflito em Gaza segundo ele é o Haaretz que, por vezes, foi duramente criticado pela população entre reclamações e cancelamentos de assinaturas.
Sem correspondentes em Gaza, jornalistas israelenses estão proibidos pelo governo de atravessar a fronteira, segundo Benn. As informações vêm de fontes como mídias internacionais que contam com correspondentes no território do conflito, ou relações pessoais de jornalistas israelenses com moradores da faixa de Gaza através de ligações telefônicas.
Do ponto de vista midiático, a característica particular deste conflito, segundo Aluf, é a comunicação direta via facebook, twitter e instagram. Opiniões pessoais e discussões trazem para a cena a opinião pública, e principalmente a crescente popularidade do primeiro-ministro de Israel, Netanyahu, no decorrer deste conflito.
“Em períodos de guerra as pessoas são menos tolerantes a críticas à conduta militar e à política do governo. Mas desta vez ocorreu um novo fenômeno, que é o pior. Geralmente na primeira semana do conflito as pessoas estão felizes, apoiando o governo, mas à medida que o conflito piora, os soldados morrem, a popularidade cai e as pessoas se revoltam. Neste caso foi o oposto. A popularidade do governo e da operação militar só foi aumentando”.
Quando questionado sobre a imagem internacional de Israel, Aluf foi simples e claro ao afirmar que as pessoas escolhem a segurança quando estão sob o terror de ataques, e os israelenses têm se sentido inseguros, especialmente após a descoberta dos túneis. Sem esquecer que se trata de uma população onde todos estão diretamente ligados ao Exército, seja na ativa, ou na reserva – a grande maioria do população prestou ou presta serviço militar e quer os seus filhos de volta sãos e salvos.
Considerado um dos jornais mais influentes em Israel, o Haaretz, que em hebraico significa “da terra”, é o mais antigo de Israel tendo sido fundado em 1918. É um jornal liberal à esquerda com circulação bilíngue em hebraico e inglês, tendo assinantes em todo o mundo.
Um de seus articulistas, Gydeon Levy, que assina uma coluna semanal sobre a ocupação na Cisjordânia e Gaza há 25 anos, frequentemente expõe sua posição anti-guerra com severas críticas a um fenômeno que chama de desumanização do povo palestino por Israel.
Durante o conflito Levy foi severamente repreendido pela mídia local em Israel e pela população, com campanhas pelo cancelamento de assinaturas do Haaretz, considerado por muitos como anti-israelense e até pró-palestino.
Em retaliação a seus artigos, o presidente da coligação do partido em poder no Parlamento recentemente o chamou para responder em um tribunal por traição. Seu último texto no Haaretz do dia 17 de agosto diz: “As sirenes silenciaram, os especialistas se foram e o absurdo retorna. Israel está de volta a sua bolha (…) Os mortos morreram e os matadores mataram em Gaza simplesmente para garantir um pequeno interlúdio de silêncio para Israel”.
Aluf Benn defende seu articulista: “Eu acredito que em tempos de guerra, é quando a democracia é realmente colocada em xeque, é quando você precisa ser crítico ao seu governo e ao comando militar, porque é quando vidas humanas estão em jogo. Você não pode se calar e depois da guerra olhar para trás e só então criticar”.
Ao mesmo tempo, segundo Benn, o Haaretz deu suporte ao governo em suas decisões durante a guerra, para evitar mais violência e limitar os danos aos civis.
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Como funciona a cobertura em Gaza?
Tem pessoas em Gaza com twitter mas não existem TVs independentes nem rádios.
Não temos repórteres israelenses em Gaza. Eles foram proibidos pelo governo de entrar em Gaza há 6 ou 7 anos. Temos alguns correspondentes que têm contatos em Gaza, que falam pelo telefone com pessoas em Gaza, a comunicação por telefone não foi cortada. Ou as então as informações vêm de contatos internacionais. Tínhamos uma jornalista de Gaza que escreveu colunas para nós, mas não eram exatamente reportando as notícias, eram mais sobre os sentimentos das pessoas do outro lado.
De onde vêm as notícias de Gaza?
De organizações e jornais internacionais que tem correspondentes por lá e pelo telefone. Uma de nossas jornalistas, a Amira Hass, mora em Ramalah, mas morava em Gaza e tem muitos amigos lá.
Qual a posição do Haaretz?
O Haaretz deu suporte ao governo em suas decisões durante a guerra, para evitar mais violência e limitar os danos aos civis.
Existe uma mídia independente em Israel?
Claro que há – mas a maioria da mídia independente tende a dar suporte ao governo em tempos de crises na segurança.
Como é a mídia local de Gaza?
Existe a Hamas TV e várias contas do twitter que são oficiais e semi oficiais, mas não sou um especialista sobre a mídia em Gaza.
E a popularidade de Netanyahu?
Uma pesquisa de opinião feita durante o cessar-fogo indicou muito apoio a Netanyahu, ao comandante do exército e ao ministro da defesa, mas não foram feitas perguntas sobre uma próxima eleição, partidos ou como ficaria o Parlamento. Antes desta operação, Netanyahu sofria problemas dentro do próprio partido, de pessoas que não o apoiavam, pessoas da extrema direita que acham sua liderança muito leve contra o terrorismo e contra os palestinos.
Ao mesmo tempo, os cidadãos de esquerda criticam Netanyahu por arrastar o passo no processo de paz, no cara a cara com o presidente da Autoridade Palestina Mahmoud Abbas, mas apoiam Netanyahu na sua condução durante a guerra.
Ele é muito popular entre o público e especialmente quando perguntam quem seria o melhor candidato a resposta é sem dúvidas Netanyahu. Essas mesmas pessoas dizem não estar felizes com os resultados da guerra, mas ainda vêem Netanyhu como o melhor para conduzir Israel por esta crise.
Como você define a posição política do Likud (partido político em poder) e de Netanyahu?
Eles se seguram na política territorial do status quo enquanto Israel se expande através dos assentamentos na Cisjordânia.
Existe uma guerra midiática em curso. Isso afeta o governo?
A pressão da mídia não, o que afeta são as relações de amizade com outros governantes como dos EUA e da Europa. Existe um temor entre oficiais israelenses sobre se vai haver alguma consequência legal depois da guerra. O cônsul de direitos humanos da ONU já nomeou uma comissão para averiguar se Israel cometeu crimes de guerra ou não. Existe uma certa preocupação de que eventualmente a Autoridade Palestina assine para participar do Tribunal Penal Internacional, o que pode abrir uma porta para acusações contra oficiais israelenses pelo que aconteceu em Gaza. Isso tudo ainda é uma possibilidade, porque ainda não há acusações específicas. E, francamente ainda não acabou.
As imagens de crianças mortas na mídia são chocantes.
O problema não é a mídia, o problema é que as crianças têm realmente morrido. Ninguém inventou. Nós (Haaretz) somos a única mídia que tenta reportar esta guerra dos dois lados em Israel. Colocamos o número de mortos na Palestina na capa. Os outros jornais israelenses escondem o que for que ocorre em Gaza na página 17. Uma pesquisa mostrou quais fontes pró-Israel e pró-palestina são usadas em citações. Os jornais pró-Palestina estavam citando a BBC, os pró-Israel estavam citando em geral jornais israelenses em inglês ou as mídias americanas mais conservadoras. Haaretz é o único jornal citado por ambos. Estamos mostrando uma guerra que tem dois lados. Ao invés de ser o porta-voz de apenas um lado.
Você tem no Haaretz um articulista, Gydeon Levy, que faz críticas ao governo israelense causando diversos episódios de repreensão e cancelamento de assinaturas. Existe algum tipo de censura em Israel?
Ele escreveu artigos críticos sobre a conduta de Israel neste conflito e levantou questões durante a guerra. Sofremos críticas e revolta dos leitores e da população em geral.
Eu acredito que em tempos de guerra, é quando a democracia é realmente colocada em xeque, é quando você precisa ser crítico ao seu governo e ao comando militar, por que é quando vidas humanas estão em jogo, você não pode se calar e depois da guerra olhar para trás e só então criticar. Eu considerei as colocações dele pertinentes. A pessoas o questionaram argumentando que ele estava errado. Mas esta é a maior característica de democracia. Ter discussões abertas até em períodos de guerra.
Não há nenhum tipo de censura do governo?
O governo não tem nenhum prevenção contra críticas. Temos censuras quanto a questões militares, por exemplo não podemos publicar onde um foguete de Hamas foi encontrado em Israel por que você não quer dar informações sobre o alvo para o inimigo. Mas não há esforço do governo em impedir algum debate. Aconteceram críticas do povo, privadas, pessoas cancelando assinaturas, grupos revoltados no facebook.
Críticas espontâneas da população?
Talvez espontâneas, talvez organizadas por grupos de direita que se opõem ao que fazemos. Eles vêem nisso uma oportunidade de ganhar popularidade com o grande público. Não foi a primeira vez. Em Israel temos conflitos recorrentes e nestes períodos as pessoas são menos tolerantes a críticas à conduta militar e a políticas do governo. Como todos os israelenses ou servem o Exército ou estão na reserva, e seus filhos, vizinhos, amigos estão no campo de batalha, eles não querem ouvir críticas.
Como o povo israelense lida com os protestos ao redor do mundo? Eles estão cientes?
Eles sabem o que está acontecendo, mas ao fim do dia não querem estar sob ameaça de túneis cavados embaixo deles. Quando sob ameaças, se tiverem que escolher entre a popularidade internacional e a segurança em suas residências, eles escolhem a segurança. Eles estão cientes das críticas. Mas, muitas vezes, as pessoas aqui em Israel acham que se trata ou de antissemitismo, ou de antigas implicâncias, ou políticas anti-Israel. Em geral, não se preocupam com estas discussões sobre opinião pública ou diplomacia, eles querem é que os militares ganhem e os soldados voltem pra casa sãos e salvos. Eles se preocupam mais com isso do que com o que estão falando em Paris ou São Paulo ou Miami. Estas questões surgem depois da guerra.
O que diferencia este conflito dos anteriores?
Acho que tem dois novos fenômenos nesta guerra comparando às anteriores. Uma é o fenômeno da mídia. Não a internet, por que já existia em 2006 e 2008. Mas facebook, twitter e instagram etc, servem como amplificadores das notícias. Temos acesso não somente ao que os jornalistas estão retratando mas a opiniões pessoais, de amigos discutindo sobre a questão. Isso é inédito para nós, israelenses.
E o outro fenômeno é doméstico, que é o pior. Geralmente na primeira semana do conflito as pessoas estão felizes, apoiando o governo, mas à medida que o conflito piora, os soldados morrem, a popularidade cai e as pessoas se revoltam. Neste caso foi o oposto. O governo e a operação militar aumentou de popularidade (a última pesquisa feita pelo Gallup deu aceitação de 82%), e eu acredito que foi porque desta vez teve uma campanha de ataques aéreos onde relativamente poucos militares estão envolvidos.
Em seguida a descoberta dos túneis alertou a população para o fato de que não se trata somente de castigar Hamas pelos ataques dos foguetes. Existe uma ameaça estratégica, onde as pessoas sentiram suas casas, suas famílias e amigos em risco, então deram suporte ao governo pela operação para acabar com os túneis. Neste caso as pessoas acharam que era a coisa certa a fazer. Por isso se tornam menos vulneráveis ao que outras pessoas de fora de Israel dizem.
Você vê uma possibilidade de paz?
É muito cedo para dizer. Não sabemos se eles conseguem encontrar um novo ponto de conciliação, a longo prazo, que levaria a um processo de paz entre Israel e a Autoridade Palestina. É possível argumentar a favor dos dois lados.
Alguma saída vai surgir. Mas acho que vai levar tempo. Não sou capaz de afirmar nada.