Essa tal de "geração projeto"
12/09/14 15:02“Destrinchando um frango, lembrei de você”.
“Eu queria te amar como eu amo meu cachorro”.
O casal abre uma conta conjunta, mas ela só queria saber de sexo.
Superexposição no facebook e no instagram já era, o que vale agora é grupo de amigos de verdade no WhatsApp.
Começar a terça-feira lavando o rosto com os cremes prescritos pelo dermatologista, e encerrar o dia jantando com os amigos, mas sem beber muito.
Uma minissérie dramática sobre o futebol, que nunca saiu do papel.
Alguns dos traços marcantes do nosso tempo como o individualismo exacerbado, a exigência permanente de produtividade ou a falta de foco, inspiraram a obra de estreia da escritora e roteirista Antonia Pellegrino, 35, “Cem ideias que deram em nada” (editora Foz).
Do ponto de vista narrativo, as cem ideias comportam de tudo: jornalismo, pequenas ficções, trocas de emails ou torpedos, e até mesmo uma lista de supermercado ideal para a família.
De forma bem-humorada e um tanto descompromissada, o livro retrata uma geração a que a autora, que é neta do psicanalista Hélio Pellegrino, e colaboradora de Miguel Fallabela e do novelista João Emanuel Carneiro, entre outros, se refere como “geração projeto”.
“São pessoas entre 20 e 40 anos, que vivem, ou desejam viver, das próprias ideias, e para tanto, haja ideia. Mas nem sempre estas ideias têm o tempo e o foco necessário para sua elaboração. Então os projetos acabam permanecendo eternamente projetos”, diz ela, nesta entrevista à Folha.
“Dar em nada tem um charme tosco, em um tempo em que tudo que você faz tem que ser sucesso. A vida não é tão linear. As cem ideias são um negativo desse mecanismo”.
De onde surgiu a ideia do livro? Por que “Cem ideias que deram em nada”?
Eu tenho a sensação de que realizar, hoje, tornou-se mais motivo de alívio que comemoração. São tantos os imperativos neste sentido que, a cada realização, o acúmulo de irrealizados nos espreita. A cada trabalho lançado a pergunta que mais se escuta é: qual seu próximo projeto. É preciso fazer, acumular, gozar, trabalhar, aparecer incessantemente. Isso já seria inquietante o suficiente, mas se soma a este fato uma brutal aceleração do tempo. Então precisamos realizar muito, e rápido. O “cem ideias que deram em nada” é o negativo deste mecanismo. É uma construção para lugar nenhum. As cem ideias que deram em nada são aquilo que não se consegue realizar em sua plenitude. E a ideia do livro veio justamente da consciência deste processo na minha própria vida.
Em que medida este livro é um retrato do seu universo ou digamos, autobiográfico? Estaria ele focado no seu meio social? E que meio social é esse?
Há no livro poucos textos de fato autobiográficos. O que há de autobiográfico é um processo, um mecanismo, um sistema, um jeito de estar no mundo que é meu, mas não só, é de todos nós que queremos tanto. Acho este modus operandi muito característico da certa classe artística, sobretudo carioca, que chamo de geração projeto. São pessoas entre 20 e 40 anos, que vivem, ou desejam viver, das próprias ideias, e para tanto, haja ideia. Mas nem sempre estas ideias têm o tempo e o foco necessário para sua elaboração. Então os projetos acabam permanecendo eternamente projetos. E eu acredito na alegria de inventar projetos que durem uma tarde entre amigos na praia, o problema é quando estas brincadeiras viram mulas-sem-cabeça, perdem o lado lúdico para passar a nos perseguir como fantasmas.
Quanto tempo levou para ser escrito, e em que circunstâncias?
5 meses e dez anos. Porque foi a sacada do título que engendrou o livro, iniciando uma extensa pesquisa em meus arquivos, atrás das minhas ideias que tinham dado em nada – algumas delas já estavam na gaveta há dez anos. Mas isto configura a menor parte do livro. A maior parte surgiu depois deste primeiro impulso, quando começa o trabalho que dura cinco meses, e eu passo a escrever e reescrever outras ideias para formar o conjunto.
Em que medida a ideia do fracasso permeia a obra?
Tem um filme independente de uma dupla de diretores pernambucanos, chamado “Pacific”, de que gosto muito. É um documentário sobre uma viagem de navio entre Recife e Fernando de Noronha. E tem uma cena, à noite, em que acontece uma festa macarena no navio. A camera grava a festa de um balcão no segundo andar, onde duas senhoras estão no primeiro plano. Elas estão exaustas, meio melancólicas. Até que o sobrinho delas chega com uma camereta e pergunta: “como é que tá a festa, tias?”. E subitamente elas se animam e dizem: “está ótima!, tamos aqui curtindo!”. E no momento em que o sobrinho desliga a camereta, ambas são imediatamente lançadas de volta ao seu vazio melancólico. O livro é sobre este vazio, que na nota de coluna social, foi traduzido para fracasso, porque é complicado falar do lugar que esta cena mostra.
Então o livro não são microcontos e pequenas ficções. O livro são as cem ideias. O que amarra aqueles registros tão diversos é o que há de irrealizado, ou irrealizável, naquelas ideias – e não o fracasso. Então, é um livro de ficção cujo eixo é conceitual: são as ideias que deram em nada.
Por onde tem transitado sua cabeça? O que tem visto de bom no cinema, na TV, na literatura?
Não sei quem é o novo diretor filipino nem estou lendo o livro do último peruano bombado em Nova Iorque. Neste momento, leio, como muita gente, “O Pintassilgo”. Desde o nascimento dos meus filhos, há dois anos, vejo o que tem na Apple Tv e aprendi a narrar “Ponyo” plano a plano. Isso pega mal nas reuniões de trabalho, no entanto não tenho mais o desejo, e muito menos a arrogância, de dar conta de tudo. Aliás, foi este distanciamento que me permitiu escrever o livro. Repertório qualquer um pode adquirir a qualquer momento, mas a experiência de ter bebês portáteis dura pouco. Então prefiro rolar na cama com meus filhos e marido, a recitar o line-up do festival de Veneza. Ao mesmo tempo, o nascimento destas crianças deu novos nortes ao meu interesse, e sinto que são investigações de longo prazo. Transitam muito pela minha cabeça questões como o antropoceno e a culinária consciente, e aqui estou falando das ideias de autores como Eduardo Viveiros de Castro e Michael Pollan.
Queria ouvir alguns comentários curtos e certeiros sobre:
– homens e mulheres de hoje: querem que a vida sentimental seja tão descomplicada quanto uma ida ao shopping. Então vivem na montanha russa, quando talvez o que falte seja literatura russa.
– como descreveria o cotidiano de nosso tempo, comparado com o passado: vivemos em um tempo em que é possível a arquidioscese do Rio de Janeiro permitir um ritual de ayahuasca conduzido por dez indígenas no Cristo Redentor. Há não muito tempo cristãos matavam indíos. Sou do time que, apesar das mazelas, reconhece mais avanços que retrocessos. Mas ainda faltam séculos para vivermos todos na Dinamarca.
– filhos e babás: sem babá é quase impossível ter filhos e manter o casamento e trabalhar e ainda fazer a unha. Por isso filho é coisa de terceiro mundo. E se um dia não houver mais terceiro mundo, terá sido extinta a melhor profissão do planeta.
– festinhas: frequento há anos, como qualquer brasileiro, mas me dediquei a elas como poucos. E cansei. Me jogo em situações escolhidas a dedo, com a fúria de sempre. Foram anos destruindo minha reputação, não posso trocar o trabalho de uma vida por um copo de suco verde.
– redes sociais: com elas, quem precisa de jornal para editorializar a vida? Então é uma revolução do ponto de vista da informação, mas muito opressor em termos de sociabilidade. A rede social matou a melancolia do jantar solitário em frente à televisão. Matou o livro na bolsa. A gente hoje se comunica o tempo inteiro, e fala muito sozinho. Eu tento falar o mínimo possível, mas ainda assim observo demais, boa parte das vezes me desconecto com a sensação de ter comido batata frita do McDonald’s. Prefiro silêncio, livro na bolsa e um bom restaurante.