Um anti-herói russo na América
22/11/14 06:33Gary Shteyngart é um dos principais representantes da nova literatura americana, sendo que Gary não é americano e nem se chama Gary.
“Fracassinho” (editora Rocco) narra a trajetória do escritor, fugindo de uma asma que lhe rouba o fôlego, quando seus pais emigram de Leningrado (atual São Petersburgo), trocados por grãos -o presidente Jimmy Carter fez um acordo com o governo de Moscou pelo qual a imigração de judeus russos seria facilitada, desde que os americanos garantissem uma remessa de cereais para a antiga União Soviética.
Assim, Gary e seus pais aterrissam nos subúrbios de Nova York em 1978. Um mundo de ficção científica se abre aos olhos do pequeno Igor, que seria renomeado Gary numa tentativa de aproximá-lo do mundo anglófono e evitar a xenofobia.
“Vir para a América depois de uma infância passada na União Soviética é o equivalente a tropeçar de um penhasco monocromático e pousar em uma piscina de puro Technicolor”, escreve o autor, que já em seu livro de estreia “O Pícaro Russo” ganhou notoriedade, seguido pelos romances “Uma história de amor real e supertriste” e “Absurdistão”.
Filho da tradição judaica do humor autocrítico, em sua obra Gary encontra a persona forte na piada, no absurdo, no sarcasmo ferino – e essa ferramenta de sobrevivência acaba por salvá-lo.
Em “Fracassinho”, ao contrário dos outros três livros, o autor abdica da máscara da ficção e escreve francamente em primeira pessoa. “Foi uma chance de juntar um registro do que era ser uma criança crescendo sob um poder decadente e mudando para outro poder decadente, no final do século 20”, diz Gary, em entrevista à Folha.
“Como escritor, dei sorte de nascer em tempos terríveis”, acrescenta.
Não à toa o autor considera Woody Allen e Philip Roth dois grandes professores: “Allen me ensinou o humor, e Roth me ensinou a tristeza. Com eles, minha educação está completa”.
Os pais judeus imigrantes e republicanos, seriam caricaturas se Gary não os redimisse com sua visão multifacetada, em que momentos de humor, ternura e melancolia se alternam.
‘Fracassinho’ a propósito é o apelido que seus pais lhe aplicam, pela falta de aptidão do filho para profissões clássicas como direito, finanças ou medicina. ‘Urso fedido’ e ‘melequento’ são outros.
“No meu caso, ter sido chamado de “o ursinho russo fedido” na infância produziu em mim um monte de literatura como adulto”.
Essa figura patética do perdedor que nas terras ianques tem peso dois, é louvada com ironia e perspicácia por Gary. A criança débil, alienígena e pobre faz sua escalada pelos muros do capitalismo multicolorido. Sua cultura dostoievskiana não valeria muita coisa na escola judaica onde começaria sua luta por um encaixe na sociedade do fast food.
Na verdade o livro começa com um ataque de pânico do autor ao ver a foto da igreja Chesme em São Petesburgo, sua terra natal, alçando-o para a psicanálise e finalmente ao reencontro com a terra perdida de sua origem.
“A América tem obsessão com vencer. Eu quero fazer o fracasso voltar a ser legal. Esse é meu motto: Fracasso é uma opção. Em outras palavras, você não precisa trabalhar no mercado financeiro”, diz o autor.
Com a visão do homem excluído, desencaixado, revolvendo suas neuroses familiares na Nova York das últimas 3 décadas, e assombrado pelos fantasmas de um passado soviético tão presente em sua casa, Shteyngart vive a guerra fria em sua própria carne.
Ele tem que se reinventar. Brota desta cisão a sobrevivência de um indivíduo que se sabe não pertencente, que se sabe à parte. Sua sensibilidade russa traz o tom cinza de São Petesburgo, e o humor judaico nova-iorquino ganha as cores fortes dos pacotes dos cereais matinais.
A odisséia de um anti-herói onde o fracasso é êxito.
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Seus outros livros são, de certa forma, autobiográficos. Por que a iniciativa de abdicar da máscara da ficção e mergulhar numa autobiografia de fato?
Bem, eu tinha 41 anos quando “Fracassinho” foi publicado. Para um homem com genes russos isso já pode ser considerado velho. A maioria dos homens russos morre aos 60 anos. Achei que era a hora de fazer. Mas também era uma chance de juntar um registro do que era ser uma criança crescendo sob um poder decadente e mudando para outro poder decadente, no final do século 20. Considerei que era algo importante o suficiente pra escrever de forma honesta, como não-ficção.
Em que medida as memórias são importantes para a sobrevivência?
Os livros já estão desaparecendo, e acredito que rapidamente textos serão totalmente substituídos, quase por completo, por imagens. Saberemos como parecíamos e o que víamos, mas talvez não recordemos como sentíamos, o que nos tocava. Uma das coisas mais humanas que podemos fazer é manter um jornal de nossas vidas e do mundo ao redor. Eu tive sorte que meus pais guardaram tanta coisa de meus primeiros escritos, mesmo sendo bobo como era.
Seus pais leram o livro? Como reagiram?
O inglês deles não é tão bom, então eles esperam a tradução para o russo.
Sua escrita tem uma observação muito perspicaz do mundo. Ser um imigrante, te dá uma autoconsciência mais profunda, um ponto de vista com distanciamento?
A literatura americana é, em geral, a literatura do de fora, o que inclui os imigrantes de certa forma. A sensação de deslocamento e a necessidade constante de imitar a cultura nativa acaba desenvolvendo as habilidade de observação. No meu caso, ser chamado de “o ursinho russo fedido” na infância produziu em mim um monte de literatura como adulto.
Na sociedade americana o jogo do perdedor-vencedor é uma questão importante. “Fracassinho” pode ser considerado a vingança do perdedor? Estamos vivendo um novo tempo onde se assumir perdedor é um ponto de virada?
A América tem obsessão com vencer. Eu quero fazer o fracasso voltar a ser legal. Esse é meu motto: “Fracasso é uma opção.” Em outras palavras, você não precisa trabalhar no mercado financeiro.
Quem são seu autores prediletos hoje?
Chang-rae Lee, Junot Diaz, Zadie Smith, David Bezmosgis, Jhumpa Lahiri. Ou seja, vários outsiders, a maioria dos quais com nomes bem engraçados mas nenhum tão impronunciável quanto “Shteyngart”.
Você acredita que as barreiras culturais estão mais leves hoje em dia?
Nos EUA as pessoas não gostam de ler literatura traduzida, porque isso é um tanto estrangeiro demais para nós. O escritor imigrante, por outro lado, está seguro, porque ele ou ela é um de nós, e geralmente fala inglês melhor do que a maioria dos nativos nascidos na América. Seus pais simplesmente cozinham rotis ou blinis ao invés de hambúrgueres.
O que significa ser um judeu hoje em dia?
Significa viver numa cidade grande, contando um monte de piadas para milhões de outro judeus a sua volta e indo a sinagoga uma vez a cada 20 anos.
Como você explicaria a ideia de um judeu que se odeia, que você menciona no livro?
Muitos judeus de direita costumam chamar os judeus que são críticos a qualquer aspecto de sua criação judaica ou ao governo de Israel como judeus que se “auto-odeiam”. Eu me amo um bocado. Acabei de me abraçar após ter pronunciado esta última sentença.
Como comparar a vida na antiga União Soviética e nos Estados Unidos?
Aterrissando em Nova York em 1979 foi minha primeira experiência com ficção científica. Vendo um Chevrolet Corvette, depois de ter crescido com carros Ladas na União Soviética, achei que era um avião sem asas.
O que acha de Vladimir Putin e a vida na Rússia de hoje?
Como se diz “Jackass” em português?
O humor e a sátira: quais são as funções deles em sua obra e em sua vida?
A sátira funciona melhor quando o mal e a estupidez colidem, e essa é a definição do governo na Rússia e, muitas vezes, nos EUA também. Como escritor, eu dei sorte de nascer em tempos terríveis.
Woody Allen e Philip Roth: que acha deles e que outros autores lhe servem como inspiração?
Dois grandes artistas e professores. Allen me ensinou o humor, e Roth me ensinou a tristeza. Minha educação está completa.
Você é um freudiano de carteirinha, no que diz respeito à influência de seus pais?
Eu não acredito que alguém seja puramente freudiano hoje, tantos excelentes pensadores vieram depois dele, sem mencionar os medicamentos excelentes. Mas muitas das ideias base parecem coerentes. O romance familiar é o maior drama para o qual nascemos. Gastamos boa parte do resto de nossas vidas vagando pelos cômodos figurativos nas mansões de nossos pais, tentando decifrar quem eles são, e por extensão, quem somos nós.
Você é ativo no twitter e conhecido compilador de frases de orelha dos livros (blurbs). Twitter e blurbs são baixa literatura? Em que medida a tecnologia joga a favor da literatura?
Eu tive que abdicar um pouco do meu blurbing, mas já fui muito ativo. Eu até fiz um slogan para um cheeseburger uma vez. Eu acho que é uma espécie de fenômeno americano. Nós gostamos de nos elogiar uns aos outros. Eu acho que a experiência tecnológica vai aos poucos empurrar a literatura para a beira, a imagem vai conquistar o mundo. Mas essas coisas vem em ondas. Levou um tempão depois do colapso de Roma para surgir um Dante. Talvez em 800 anos pessoas voltem a gostar de literatura!