Quarteto fantástico
03/12/14 15:09Assistir a um concerto do Kronos Quartet, que se apresenta a partir de quinta no Sesc Pinheiros, é uma experiência única. Não seria exagero dizer que a história da música contemporânea seria outra sem a contribuição deste festejado quarteto, que com seus 40 anos de história, 57 álbuns gravados e mais de 2,5 milhões de discos vendidos, continua rompendo barreiras.
Com uma paleta que vai do pop ao étnico, do erudito passeando pelo rock e pela música eletrônica gravada, e tendo composições e arranjos concebidos originalmente por artistas como Philip Glass, o Kronos já dividiu o palco com nomes como Paul McCartney, Allen Ginsberg, Zakir Hussain, Modern Jazz Quartet, Noam Chomsky,Tom Waits, Betty Carter e David Bowie, além de ter participado das gravações de Nine Inch Nails, Dan Zanes, DJ Spooky, Dave Matthews, Nelly Furtado.
O belo e o grotesco, o catastrófico e o humor, são elementos que habitam o universo sonoro do quarteto. A experimentação se estende para o campo visual como por exemplo em uma peça da russa Sofia Gubaidulina, dedicada ao quarteto, em que bolas de plástico vazias são colocadas nos instrumentos, com pontuação de luzes coloridas que lampejam na cena.
Em entrevista para este blog, seu fundador David Harrington conta que iniciou o quarteto sob as sombras da guerra do Vietnam no berço da contracultura americana ouvindo Beethoven e Mozart, sendo despertado por Black Angel de George Crumb. Deste colapso de influências nasce o conjunto que existe há 40 anos e é considerado o Rolling Stones do quarteto de cordas.
“Em 1973 a ideia de um quarteto de cordas era inconcebível para a sociedade americana. Estou acostumado à sensação de eu contra eles. O mais importante é que eu sinta que é certo para mim.”
David se considera um investigador e o quarteto é seu instrumento. “Meu instrumento é o quarteto e não o violino.”
O repertório que trazem para o Brasil conta com composições de grande potência como as de Terry Rilley, velho parceiro do Kronos e um dos pais do minimalismo, que com “Sunrise of the Planetary Dream Collector” abre espaço para improvisações dos músicos e tem peças nos três dias.
O extenso repertório desses três dias vai de Wagner com “Prelúdio de Tristão e Isolda” a uma suíte da trilha do filme “Requiem para um sonho”, e “Flow”, um solo de violino composto pela artista performática Laurie Anderson, viúva de Lou Reed. Da América do Sul essa constelação de sonoridades apresenta duas peças de Astor Piazzolla escritas originalmente para o quarteto e Amon Tobin, brasileiro compositor e produtor de musica eletrônica.
“A música é um mundo vastíssimo que partilhamos. Ao escolher, deixando que a música te leve, você pode expressar como você quer que o mundo seja.”
“Eu não penso cronologicamente, eu celebro o agora. A música nos força a viver o momento que estamos vivos, o agora.”
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Como você descreveria o quarteto?
O melhor seria não descrever e deixar livre para os espectadores experienciarem por si. Tentamos tocar de forma a dar alguma ideia do que está acontecendo com a música do mundo que nos atrai.
E o que os atrai?
Muita coisa, e nunca sei de onde vem o próximo. Por isso gosto de deixar os canais abertos. A música que tocamos tem uma qualidade que nos puxa, magnetizados.
Quando iniciou o quarteto?
Em 1973, logo depois da guerra do Vietnam. Durante a guerra tudo era uma espécie de sombra do Vietnam. A questão era qual a música que expressaria o que vivíamos. Eu ouvia, enquanto criança, os clássicos: Beethoven, Mozart… Na adolescência conheci a música do mundo todo enquanto todos os jovens estavam sendo chamados para o exército, para a guerra do Vietnam.
Como expressar nossa revolta? Mas em 73 ouvindo Black Angel de George Crumbs soou certo. Era o mundo da música composta, parecia Jimi Hendrix. Demorou um tempo para juntar o quarteto. Mas em 1978 ele já existia.
A gravadora Sony já está há dois anos com a gente. Somos muito gratos e o futuro é vibrante. Hoje sou o único da formação original.
Sua música é política?
Tudo é política, toda escolha é política. Se por ser político você quer dizer fazer algo por aquilo que você quer que o mundo se torne. A música é um mundo vastíssimo que partilhamos. Hoje temos acesso à música de muitos lugares.Ao escolher, deixando que a música te leve, você pode expressar como você quer que o mundo seja.
O quarteto se chama Kronos, que é o titã pai de Zeus representando o tempo que devora seus filhos. O que é o tempo na música de hoje para você?
Nunca teve um tempo como este. Nestes concertos em SP vamos tocar composições do mundo todo de várias épocas. Concertos podem ser celebrações da criatividade. Eu não penso cronologicamente, eu celebro o agora. A música nos força a viver o momento que estamos vivos, o agora. Podemos tocar uma música antiga e imaginar o futuro.
Quais os planos daqui em diante?
Nos próximos meses estaremos envolvidos num novo projeto de uma música sobre o genocídio armênio em 1915, quando o governo turco matou centenas de milhares de armênios – este evento deu a Hitler a ideia do holocausto. Nós vamos explorar esta música e ao mesmo tempo celebrar o aniversário de 80 anos do Terry Rilley, que é uma pessoa extremamente generosa com sua música. Nós vamos tocar suas 28 peças.
Para onde caminha a música contemporânea?
Cada um está no seu próprio trilho. Coletivamente podemos criar um conjunto, mas cada um no seu trabalho individual. Ontem mesmo, minha filha colocou o disco novo da Sinead O`Connor para eu ouvir, achei incrível.
Qual a importância do aspecto visual dos concertos?
As pessoas vêm ver o concerto. Parte da música é assistir ela sendo feita. Por séculos os intérpretes se preocupam com o aspecto visual. É muito importante.
E a música americana?
O mundo da música americana é muito vasto. Temos influência do mundo todo. Quando pesquiso sobre minha cultura vejo os chineses, mexicanos, europeus… o absurdo das políticas anti-imigrantes é que a riqueza da nossa cultura vem exatamente destas influências.
Como você vê a influência do mercado?
Eu me preocupo com o que é satisfatório para mim. Em 1973 a ideia de um quarteto de cordas era inconcebível para a sociedade americana. Estou acostumado à sensação de eu contra eles. O mais importante é que eu sinta que é certo para mim. No disco da Sinead O`Connor ela dedica o disco a ela própria, muito honesto. Cada um sabe o que é bom pra si. Música é algo muito pessoal.
Vocês são muito populares. Como é lidar com isso?
Aconteceu tão lentamente que eu mal percebi as coisas acontecendo. A maneira como a música acontece é muito pessoal, conecta uma pessoa de cada vez, que é o que mais amo. O som de dois violinos, uma viola e um violoncelo é único, privado. Essa formação foi inventada em Viena do século 18 e ainda mantém esta qualidade única tão incrível. Meu instrumento é o quarteto e não o violino.