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A economia sob a perspectiva dilmista

Por Morris Kachani
09/10/14 17:39

mpO ajuste fiscal na economia não é necessário. Não há necessidade de um “tranco”. O que faz o governo Dilma é trazer a inflação para o centro da meta de forma gradual. A inflação, a propósito, não está fora da meta -está fora do centro, e continua dentro da banda de flutuação. E o brasileiro não deve se deixar impressionar pelo crescimento abaixo da expectativa. Esta seria uma visão limitada pelo curto prazo.

Em linhas gerais, neste segundo turno teremos o embate entre um modelo de austeridade fiscal entrelaçado com responsabilidade social, representado pelo governo Dilma, e uma visão neoliberal clássica simbolizada pela candidatura Aecio Neves.

Este é o diagnóstico do economista Marcio Pochmann, um dos principais quadros do PT, ex-presidente do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), hoje à frente da Fundação Perseu Abrahmo, espécie de think tank do partido.

Pochmann apresenta uma visão crítica sobre o Plano Real e ataca a privatização da Vale do Rio Doce. Sobre a Petrobras, arremata: “É preciso saber se a Petrobras é do Brasil, ou se o Brasil é da Petrobras”.

Indagado sobre o represamento das tarifas, em entrevista a este blog, Pochmann defendeu a manutenção dos preços administráveis, e disse não enxergar exagero algum no controle dos gastos públicos.

*

Acho que a gente podia falar do pleito, inicialmente. Quais são suas considerações?

Para contextualizar, em primeiro lugar, estamos diante da mais grave crise do capitalismo. Tem seis anos que a crise de 2008 se iniciou e não há, portanto, um desfecho ainda.

É a pior de todas?

Depois da depressão de 1929 , essa não tem paralelo. Estamos num cenário internacional desfavorável, na semana passada o próprio FMI soltou um documento que analisa uma trajetória de quase estagnação da economia mundial. Então, é um quadro internacional complexo, e estamos realizando a sétima eleição presidencial desde que transitamos da ditadura para a democracia.

Essa, possivelmente, é a eleição mais importante do mundo nesse ano, porque ela é de certa maneira uma eleição divisora de águas na medida em que você tem dois modelos de enfrentamento da crise, olhando em termos internacionais.

Nós temos um modelo que é um pós-70, um modelo de sociedade que de certa maneira libertou os ricos de uma perspectiva de que é possível os ricos ficarem ricos sem necessariamente elevar o bem-estar dos pobres, que é a trajetória que se percebia até a crise de 29. Ali você tinha a expansão da riqueza sem trazer consigo uma melhora do bem estar material dos mais pobres. Então, o capitalismo convivia com desigualdades imensas no final do século XIX e começo do século XX.

Hoje, nós estamos vendo que nesse modelo, que está em curso nos EUA e na Europa, é inegável a ampliação das desigualdade –não obstante a melhora da renda dos ricos; esse é um modelo que é uma alternativa de enfrentamento à crise em que você descola as grandes rendas da possibilidade de que os de baixo melhorem.

De outro lado, nós temos um outro modelo que é um modelo que se construiu na saída da segunda guerra mundial em que, para que os ricos pudessem continuar com sua riqueza, era necessário ancorar a melhora do bem-estar dos mais pobres. É o projeto que durou  praticamente quase 30 anos nos EUA e na Europa e que é conhecido como os quase 30 anos gloriosos do capitalismo do pós-guerra. Os ricos continuaram ricos, evidentemente, mas houve uma melhora dos de baixo e construiu-se uma sociedade menos desigual.

Nós nunca tivemos isso no Brasil, por várias razões, e essa a meu modo de ver é a tentativa que se constitui com a vitória do Lula em 2002, com o objetivo de se construir um crescimento que precisa ser acompanhado da elevação do bem-estar material dos mais pobres sem que isso signifique prejuízo para os mais ricos.

Então, ao meu modo de ver, nós estamos diante dessas circunstâncias, de dois caminhos de como enfrentar o cenário desconfortável de uma crise de dimensão global. Essa eleição vai desempatar. Desempatar o que? Os 12 anos que tivemos de 90 a 2002 – com a ressalva de que obviamente são governos diferentes, tem o Collor, o Itamar e o próprio FHC… -, e os 12 anos de PT.

O Plano Real foi importante?

Com o Collor se estabelece uma perspectiva de que o Estado é o problema do país, e portanto o Estado tem que passar por modificações etc. Tem diferenças das duas gestões FHC para o Collor, mas ali também está claro que o Estado é o problema. É óbvio que eu não quero dizer que o Collor é igual ao FHC, mas no fundo tem ali uma linha que conduz uma perspectiva comum de que o Estado é o problema.

Eu diria assim, que de 2003 até agora, tem uma perspectiva de que o Estado é parte da solução. Obviamente que o Estado é problema também, assim como o setor privado tem problemas.

Então são 12 anos de uma perspectiva e 12 anos de outra e essa eleição é uma eleição que vai desempatar.

Eu fiz uma entrevista com o Fabio Wanderley Reis há um tempo e ele falou que na visão dele houve um círculo virtuoso que passava pelo Plano Real e desembocava no Lula.  Como isso te soa?

Eu, na verdade, não concordaria, pois acho que o Plano Real na verdade se resumiu a um projeto de estabilização da inflação e não a um projeto de desenvolvimento econômico como fora o PAEG da ditadura em 64. O PAEG foi um plano para combater a inflação, mas ao mesmo tempo um plano que estabilizava a inflação e estabelecia um projeto de desenvolvimento. O Plano Real não conseguiu isso porque na verdade a taxa de expansão da economia foi baixíssima, conviveu com alto desemprego.

Até porque também tinha aquela perspectiva de que o desenvolvimento é quase que espontâneo das forças de mercado. Se você faz a estabilização a economia arranca por si só e vai embora, essa era a ideia. Então combatendo a inflação você leva a essa expansão.

O Plano Real trouxe estabilização.

Obviamente que a estabilidade monetária é um passo importante mas ela não é suficiente por si só.

E as privatizações, quando se fazem necessárias?

Eu diria o seguinte: na verdade, estamos discutindo a questão do Estado. A meu modo de ver, acredito que há espaço para o Estado não estar presente na economia brasileira, mas há setores que ele deveria estar presente e não está. O que estou querendo falar em relação a isso? Na segunda metade dos anos 1950, a única fábrica montadora de veículos no Brasil era estatal, a Fábrica Nacional de Motores e, por outro lado, você olhava o Brasil da época e nós não tínhamos uma rede nacional de energia elétrica, não tínhamos um sistema de telefonia decente (tinha aquela música que dizia, “Rio de Janeiro, cidade que me seduz, de dia falta água e de noite falta luz”). Prevalecia o modelo privado e as empresas obviamente davam água e energia para quem tinha dinheiro para pagar.

Não estou cobrando isso, é a natureza do capitalismo isso, tá certo? O problema é que somos um país de dimensões continentais. Deixado nessas circunstâncias, você não vai unificar o país. Então, ali, o JK faz uma opção: ele privatiza por exemplo a Fábrica Nacional de Motores e há um movimento de estatização da telefonia e do setor elétrico brasileiro. Isso, na verdade, permitiu fazer um movimento de integração nacional.

Esse, ao meu modo de ver, é um fator importante a ser considerado. Obviamente o Estado brasileiro não pode estar em tudo o que é lugar, mas onde é que o Estado tem que estar e onde é que o setor privado tem que estar? Isso, de certa maneira, não está muito bem resolvido. Mas veja que no governo Lula e sobretudo no da Dilma a ideia das concessões aparece como uma declaração de que em determinados setores não se justifica mais a presença do Estado.

Como é que você avalia esse primeiro governo Dilma?

O governo do presidente Lula na verdade foi muito feliz em inverter prioridades. Aquela prioridade de primeiro crescer para depois distribuir foi trocada por uma outra – vamos distribuir para ver se a economia cresce. De certa maneira houve um movimento nesse sentido que permitiu na verdade você colocar renda, sobretudo pela geração de emprego em determinados segmentos que não tinham participação no mercado de consumo, e isso gerou uma demanda numa economia que vinha abaixo do ritmo de expansão e com grande capacidade ociosa.

Então, o fato de você colocar renda, cria poder de compra, combinado com o ciclo de expansão do comércio internacional. Isso, na verdade, gerou uma perspectiva de que o governo Lula seria capaz de estabelecer um ciclo de expansão de médio e longo prazo tendo a premissa de que ao distribuir a renda ele geraria consumo, o que alimenta a demanda e começa a devolver o investimento.

Só que aquilo que tinha sido feito para acelerar o crescimento econômico (o PAC), em função da crise de 2008 se tornou na verdade um sistema de defesa do setor produtivo, evitando que nós tivéssemos uma recessão como se observou em outros países. Então, o PAC serviu na verdade para defender o setor produtivo, a renda, o emprego, tanto é que o Brasil continuou reduzindo a pobreza e a desigualdade mesmo num ambiente internacional desfavorável.

E estava claro ali no final do governo do presidente Lula que precisaria reativar o investimento porque na medida que você distribui renda e começa a ocupar capacidade ociosa chega determinado momento que isso é economia da capacidade plena. Então, ou você vai importar mais ou isso vai virar inflação. Você precisa gerar um ciclo de investimentos.

A perspectiva que eu vejo é que na verdade a presidente Dilma trabalhou esses quatro anos para preparar a economia para os investimentos. Então, essa grande mudança que ela fez dentro da estrutura do Estado com a questão da reorganização dos recursos para a Petrobras, para as concessões, nos abriu uma oportunidade.

E a taxa de crescimento, bem abaixo do esperado?

Esse ano era um ano para o Brasil estar crescendo muito mais. E por que não está? Estamos em um ano eleitoral e os concorrentes dizem, “a economia está muito mal, a inflação descontrolada, vamos precisar fazer um ajuste na economia, um ajuste fiscal”. Aecio Neves e possivelmente até mesmo a Marina faria uma recessão no ano que vem para poder ajustar em termos fiscais a economia e ao mesmo tempo dar um choque tarifário para poder, com a economia em recessão, fazer uma elevação dos preços que em tese estariam represados, inibindo o efeito inflacionário. Nesse sentido, os empresários, obviamente, devem pensar, “eu não vou jogar num investimento de médio e longo prazo se ano que vem vai ter recessão e eu não sei se depois recupera…”. Então na verdade os empresários recolheram os investimentos.

Você acha que o ajuste fiscal é necessário?

Não. A minha perspectiva é que nos últimos 12 anos temos tido governos, se você olhar na sua trajetória, governos de austeridade fiscal, com 2% em média de superávit fiscal. Não dá para dizer que é um governo com um descontrole. Sobretudo quando você olha inclusive a relação da dívida líquida do setor público em relação ao PIB que caiu de 60% na era FHC para 30 e pouco. Enfim, eu não quero fazer comparação, mas eu não diria que é um governo que mantém suas finanças de forma desorganizada, pelo contrário.

Mas ajustes são necessários? Essa é a pergunta. Quando a gente vê a inflação…

É que a opção é diferente. Você tem uma opção com o Aécio que é de dar um tranco na economia e ajustar logo, e obviamente que isso tem consequências sociais. Qual é a perspectiva do governo atual? Que você pode, na verdade, fazer gradualmente com que a inflação volte pro centro da meta. E isso traz uma série de alternativas que não passam necessariamente pela elevação de juros.

As tarifas não estão represadas?

Na verdade você teve um represamento que se deu em função das manifestações do ano passado, sobretudo na tarifa de ônibus. As prefeituras terminaram não aumentando. Não foi um represamento de ordem do governo federal.

E o combustível, por exemplo?

Por isso que se diz que são preços administráveis. É preço para ser administrado. São empresas estatais, que vivem de recursos públicos. Então, obviamente, se você está com a inflação mais elevada, você administra esse preço para poder reajustá-lo em algum momento que você possa ter mais folga, e esse segundo semestre você começa a ter alguma folga. Já há uma suavização da inflação. Tem a questão dos preços agrícolas que também todo início de ano elevam. É preciso um olhar mais cuidadoso em relação à questão dos preços dos produtos alimentícios, por exemplo, que impactam a inflação. Acho que tem manobras para que o governo possa atuar e gradualmente trazer a inflação pro centro da meta, que não seria na verdade resultado de descontrole fiscal. A meu modo de ver não está aí o problema de uma inflação acima do centro da meta.

A diferença entre o crescimento do PIB projetado no começo do ano e o que está se esboçando é brutal. Outras questões como o superávit primário, os juros, o reajuste dos preços administrados, sobressaem.

O governo Dilma na verdade propõe uma austeridade fiscal com responsabilidade social. A economia não é um fim em si mesmo, é um meio para elevar o padrão de vida para a população. Eu posso fazer com que a inflação caia rápida e dramaticamente, mas eu vou ter consequências sociais, e isso significa apostar naquilo que tem sido uma marca do capitalismo brasileiro, que é a chaga da desigualdade.

A desigualdade também se estabilizou de 2011 para cá, não?

Infelizmente há uma certa regressão no Brasil, de se olhar a questão social através de um índice chamado GINI, que é de desigualdade. Ele é importante, mas ele não mede todas as partes das rendas. Eu olho mais a trajetória, que me parece mais importante. Quando eu vejo outros países, a trajetória é de subida e a nossa é de queda. Mas tem um outro indicador que me parece ser importante de ser considerado, que é chamado de distribuição funcional da renda. Nesse sentido há um movimento de recuperação do poder de salários na renda nacional. Então é outro componente né?

E depois, a desigualdade no Brasil não se resume apenas a desigualdade de renda, ainda que ela seja expressiva. Nós temos desigualdades de acesso a várias coisas no Brasil, então eu não quero deixar em segundo plano –o tema da desigualdade de renda é importante–, mas desigualdade é muito mais do que isso.

Outra coisa que a gente escuta bastante é que 2014 vai ser um ano de ajustes. Existe uma movimentação nesse sentido?

Obviamente que a determinado grupo interessa passar essa visão. É claro que nós vamos crescer menos do que imaginávamos e por crescer menos vamos ter menos arrecadação, então tem um impacto na definição do superávit fiscal, mas obviamente que também essa questão do comportamento econômico não pode ser vista tão somente como o desempenho do PIB, ainda que seja um indicador relevante, mas também tem que ver como está a população: se está aumentando o desemprego, se os salários estão caindo… Você tem um outro aspecto que também deve ser considerado em relação à qualidade de vida das pessoas em última análise.

Os desafios da Dilma em um eventual segundo governo seriam quais?

A meu modo de ver, a presidenta tem como desafio dar continuidade a três questões que me parecem absolutamente fundamentais: primeiro, em relação à presença do Brasil no mundo. Depois de termos passado 10 anos digamos, com o governo Lula tentando contribuir com mudanças nas instituições multilaterais como o FMI e o Banco Mundial, por exemplo, com articulações internas, nós não tivemos sucesso. Ou seja, os EUA e a União Europeia estão achando que o mundo está bem e não querem fazer mudança nenhuma.

Não que o Brasil tenha abandonado essa trajetória da diplomacia dentro dos organismos das Nações Unidas, mas na verdade ele se reposiciona construindo através dos chamados BRICS uma outra estratégia do ponto de vista da expansão do comércio, do ponto de vista da constituição de um padrão monetário, que me parece bastante exitoso. É a primeira vez que o Brasil tem algum protagonismo do ponto de vista internacional.

A construção que foi feita pela Carta de Fortaleza em que reunimos aqui os chefes de Estado e depois um diálogo com os países da UNASUL, está criando uma possibilidade bastante interessante em relação ao fato de que hoje, no mundo, as relações sul-sul são mais importantes do ponto de vista comercial e econômico do que as relações norte-norte. Então tem um outro mundo se desenhando –o Brasil é um participante importante, e vamos evoluir.

A impressão que eu tenho é de que o debate econômico no Brasil é um debate que está de certa maneira submetido a certa névoa em que você não consegue ver perfeitamente as coisas. Então você fica contaminado pela perspectiva dos analistas do mercado financeiro, que é de um curto-prazismo.

Eu estou querendo me distanciar um pouco do curto prazo, que eu ainda acho importante, mas olhar um pouco a perspectiva de mais longo prazo.

O segundo desafio que me parece importante é a questão da reinvenção do mercado de consumo brasileiro. Isso se dá pelo fato de que na verdade hoje nós temos um protagonismo do ponto de vista do federalismo brasileiro de novo tipo. Essas regiões que mais crescem hoje são as que anteriormente eram conhecidas como regiões subdesenvolvidas (as regiões Norte e Centro Oeste).

Quer dizer, há uma mudança do ponto de vista do continente brasileiro que de certa maneira continua ainda muito vinculado à parte litorânea. Eu acho que tem nesse governo alguma coisa vinculada com o JK que era a ideia de levar o desenvolvimento pro centro-oeste e norte do Brasil. Então, essa questão do desenvolvimento menos desigual do Brasil me parece uma coisa importante.

Veja que de 1870 aos anos 2000, pra onde ia São Paulo ia o Brasil. Hoje isso não é mais verdade. Não é por menos que São Paulo, pela primeira vez desde a retomada democrática, não teve um candidato competitivo. São Paulo foi o Estado que mais sofreu com o esvaziamento industrial. Hoje as forças dinâmicas de São Paulo são o setor financeiro e o agronegócio.

Então, como é que você recompõe o federalismo brasileiro me parece um desafio muito grande pra presidenta num momento em que você tem o esvaziamento das instituições de representação de interesses.

Agora, tem um terceiro desafio que eu acredito que está relecionado a essa mudança na estrutura social brasileira. É uma sociedade que vive com questões de novo tipo como é o caso da transição demográfica muito acelerada. Hoje quem chega aos 60 anos de idade vai viver mais 22 anos, vai viver até os 82. Isso significa olhar as políticas públicas de outra maneira. Nós temos mais de 2 mil cidades brasileiras que são quase cidades fantasmas porque as pessoas saem de lá e vão ficando apenas as mais velhas.

Ou a alteração com as famílias monoparentais, que são as que mais crescem. Há questões nessa nova cultura social brasileira.

Como é que se organiza o sistema educacional? Como você faz com que as pessoas passem a ingressar no mercado de trabalho depois de concluir o ensino superior?  Tem questões aí muito grandes em relação a essa estrutura social brasileira que são um desafio enorme para o governo.

E o setor produtivo?

Na verdade nós temos que olhar o que é que o Brasil pode fazer do ponto de vista das cadeias produtivas globais. Essa é a questão.

Hoje você tem três grandes cadeias produtivas globais que respondem por 2/3 dos investimentos em ciência e tecnologia: a cadeia da parte de software e tecnologia de informação e comunicação; a do setor de fármacos; e a do setor automobilístico. Elas respondem por 64% dos investimentos no mundo todo. Destas três, estamos relativamente bem na indústria automobilística; a de fármacos está passando por uma mudança significativa, com os genéricos, que abriram uma oportunidade enorme para as empresas brasileiras. Mas estamos relativamente débeis no setor de software e tecnologia de informação que acho que é um setor que precisamos fazer um esforço muito maior.

Mas dentro dessas 3 cadeias nós temos o que dizer. Então, não vejo assim que estamos diante de uma desindustrialização, que o Brasil perdeu espaço e vai virar um país primário exportador.

Em termos de reformas, pouco foi feito nestes 12 anos, não?

Em primeiro lugar, acho que o presidente Lula constitui a sua maioria política pelos derrotados do período neoliberal -trabalhadores, pequenos empresários, agricultura… ele reuniu ali uma maioria de maneira geral de gente que havia sido perdedora ou tinha ganho muito pouco com o período neoliberal. Então, na verdade, esse período é um período para repor aquilo que o neoliberalismo tinha retirado em relação ao emprego, questão da renda…

Como você chamaria o período Lula, só por curiosidade? Você chamou o outro de neoliberal…

Um período de desenvolvimentismo, se você quiser. É a ideia do desenvolvimento que você precisa repor. Acredito que, nessas eleições, o tema da reforma voltou, mas são sentidos diferentes. Penso que tem aí um grande imbroglio que é a reforma política, que é ao meu ver a mãe das demais reformas. Se você não fizer essa reforma não consegue fazer as demais, infelizmente. Aparentemente o resultado eleitoral aponta uma representação muito mais fragmentada. Quem for presidente vai ter uma dificuldade do manejo de Legislativo muito grande.

Então esse tema da reforma política… Tem que fortalecer os partidos. Não somos um país de tradição democrática infelizmente. Esse país tem uma cultura autoritária. São mais de 500 anos de história com 48 de experiência democrática. Então, fortalecer os partidos e instituições é fundamental. Você tem na verdade um legislativo que representa muito pouco a população do ponto de vista do que é a população. É débil na representação feminina, dos não-brancos, dos jovens…

O que as manifestações de 2013 representam nesse contexto? Um contraponto?

Não sei se temos uma boa resposta que reflita 2013. Infelizmente, eu acho que as manifestações do ano passado não culminaram numa outra alternativa.

A impressão que eu tenho é que na verdade 2013 trouxe os problemas presentes de uma sociedade que transita para uma sociedade-serviço. Os problemas ali representados são problemas de serviço: educação, saúde, transporte.

De fato, a cesta de consumo da população é o consumo de serviços. O que está em jogo é, como você apropria o seu tempo nessa sociedade de serviços? Que tempo eu vou ficar do meu dia no transporte, na fila do hospital? Nós temos, na verdade, uma baixíssima produtividade nos serviços. Públicos e privados. Quem é que está satisfeito com o sistema bancário que nós temos? Telefonia? Plano de saúde? Coisa assim muito concreta.

Acabamos de sair de uma eleição e você falou sobre um Legislativo que não nos representa.

É meio difícil falar que não representa porque ele foi eleito. Não posso falar que não. Mas ele tem pouca conexão com a população do ponto de vista da identidade.

É uma questão de reforma política ou é mais que isso?

Sem dúvida. Porque no modelo que nós temos, que é herança da transição ‘transada’ que fizemos, na verdade o Legislativo pode dar golpe no Executivo (golpe, que eu digo, é convocar uma CPI e paralisar o governo, não votar em nada etc). Isso na verdade distorce a eleição. O mais dramático de tudo é que a população vota no Executivo que de maneira geral não tem maioria no Legislativo.

O que você precisa fazer, se foi eleito com um programa, mas não tem maioria? Aí você tem que trazer gente que pensa completamente diferente. Vai ter que negociar coisas que não tem nada a ver com seu programa. Aí vai desconstituindo.

O Getúlio dizia que cada eleição envolvia 3 eleições simultaneamente. A primeira é pelo voto. A segunda é como se conforma o governo, com que partidos. E a terceira eleição é quem manda no governo. Quem puxa pra lá ou pra cá. Isso, ao meu modo de ver, precisaria ser aperfeiçoado enquanto sistema.

Que pensa da polarização PT – PSDB?

De certa maneira, com o passar do tempo, essa tensão entre PSDB e PT está diminuindo. Se você pegar 2006, 90% dos votos no primeiro turno foram pro PSDB e pro PT. Hoje nós tivemos 70%.  Então está havendo uma queda. A meu modo de ver, a sociedade vem se transformando e os partidos estão se demonstrando incapazes para acompanhar essa transformação. É um tema complexo do ponto de vista da questão da democracia, porque o apelo de partidos, de sindicatos, isso não motiva mais as pessoas. Mas isso não quer dizer que não há contradição, que as pessoas não estão insatisfeitas, que almejem alguma coisa diferente. Mas há uma certa desconexão entre essa sociedade transformada e, ao mesmo tempo, a capacidade das instituições.

Quando o Eduardo Giannetti comentou aquela ideia de reunir os melhores quadros do PT e do PSDB para um governo de união nacional, como te soa essa ideia?

A polarização não é apenas um embate eleitoral. São projetos diferentes. Não são comuns. São visões diferentes.

Na verdade, o executivo é aquele que deve tomar a decisão. Quer dizer, os melhores quadros podem ser consultores, analistas, mas não necessariamente sabem decidir. É o seguinte: “você pode ir pra lá. Se você for pra lá vai ter isso aqui, etc, mas decidir não é comigo; você é o cara que tem o voto e tal”. Então o que é um quadro? Tomar decisão é uma coisa difícil que o intelectual, que seria o quadro, tem dificuldade. Tomar decisão vai agradar um e desagradar outros. Então botar os melhores quadros pode não decidir pra lugar nenhum.

Voltando ao tema da economia, o gasto público, no seu olhar, precisa ser controlado?

Eu não vejo nenhum problema imediato em relação ao gasto público, porque ele vem sendo menor do que a receita do ponto de vista do conceito primário, gerando superávit suficiente para permitir que a trajetória da dívida seja cadente. Isso que tem sido feito nos últimos 12 anos. Então não vejo a urgência de você fazer movimento maior. Eu olho por exemplo e vejo que o setor público teve ganho de produtividade nesses últimos 12 anos, porque o gasto social no governo federal aumentou de 13% para 16% do PIB e nesse mesmo período você reduziu o peso do custeio da folha de pagamento em 0,2 pontos.

Acho que a experiência com relação ao gasto público mostra que houve uma progressividade do gasto. Nós estamos gastando melhor. O que não significa dizer que não tenhamos problemas. Isso é uma ação recorrente, mas estamos gastando progressivamente melhor. Os mais pobres estão progressivamente com mais benefícios.

Mas nós temos outras questões que teriam que ser consideradas como é o caso do financiamento com gasto público de despesas privadas, por exemplo. A quantidade de subsídios, de renúncia fiscal. O próprio imposto de renda oferece uma série de subsídios para determinados segmentos enriquecidos do país.

E a Petrobras, às voltas com um preço subsidiado de combustível e denúncias de corrupção. O que deveria ser feito nela?

Acho que temos que separar as coisas. Primeiro, o problema da corrupção. Como diz a palavra, é a COrrupção. Não é só “rupção”. Tem o “Co”, que é o corruptor também.

Corrupção é algo que existe infelizmente tanto no setor público quanto no privado. Não é algo que contamina apenas o setor público. No setor privado é até maior, mas como ninguém sabe…

O que interessa no caso do setor público é que é dinheiro público, etc.

O que eu vejo é que a administração do PT é uma administração em que esse tipo de informação veio à luz. Foram não sei quantas operações da Polícia Federal. De certa maneira não há formas de esconder coisas desse tipo.

Não vou voltar ao governo do FHC, mas posso falar dos governos de São Paulo e Minas Gerais. Quantas CPIs tiveram lá sobre o Mensalão tucano? O PT teve alguns de seus quadros presos. Não significa, então, uma complacência com a corrupção. Pelo contrário. Se você olhar do ponto de vista histórico, qual o período em que tivemos mais ações em relação à problemática da corrupção? Com reação da Controladoria Geral da União, por exemplo?

Eu acho que não há uma aceitação da corrupção. Ela exige uma fiscalização e uma atuação permanente que eu acredito que estejam sendo feitas.

O fato é que o modelo de administração da Petrobrás, na verdade, é um modelo que veio já herdado e que resulta justamente desse problema de ordem política em que você compõe para ter maioria no Legislativo.

Então, isso é um problema na administração. O que não significa a conivência.

A situação atual não justifica dizermos então que a Petrobras, se fosse privatizada, não teria corrupção. A Petrobras hoje, é protagonista de um setor que responde a praticamente 10% do PIB brasileiro. Com o pré-sal, possivelmente vai responder por 20% do PIB. Então, o dinamismo da economia nacional passa por ali. O que nós temos que levar em consideração é o seguinte: a Petrobras é do Brasil, ou o Brasil é da Petrobras?

Se ela é uma empresa estatal, se ela é do Brasil, em tese, quando ela vai fazer licitação das compras, ela vai comprar do mercado interno. Vai virar uma política de desenvolvimento, uma política industrial, porque possivelmente para a Petrobras seria melhor comprar de outros países pois pagaria até mais barato com juros da empresa. Mas ela é uma empresa estatal. Portanto, se ela comprar aqui, ela gera dinamismo aqui.

Então a Petrobras não é uma empresa privada cujo objetivo é o lucro fundamental. É claro que ela tem que ter o objetivo do lucro, não vou negar isso, mas em que medida esse objetivo do lucro é compatível com as demandas da sociedade?

Veja a companhia Vale do Rio Doce. Se a Vale do Rio Doce fosse do Brasil, e não o Brasil fosse da Vale do Rio Doce, onde ela faz buraco tinha que ter lugares de desenvolvimento local. Aí vamos ver o papel da Vale do Rio Doce. Onde é que ela faz buraco pra tirar minério? É lugar que se desenvolveu? Mas na natureza do capitalismo, da empresa privada, ela quer o lucro, então não está muito preocupada com o seu entorno. Agora, se é uma empresa estatal, ela tem esse compromisso.

A Vale do Rio Doce tem alguns projetos sócio-ambientais.

Pra ganhar um prêmio? Pode ser (risos). Agora, como é que você introjeta no plano local a importância de uma empresa com essas características que tem uma forte presença orçamentária?

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"Devemos sempre nos guiar pelo afeto"

Por Morris Kachani
04/10/14 20:56
arte produzida pela própria audiência do CQC, via internet

arte produzida pela própria audiência do CQC, via internet

O apresentador Marcelo Tas, 54 anos, tem três filhos. Dois deles, Miguel e Clarice, de 13 e 9, do casamento com a atriz Bel Kowarick. E Luc, gerado em Nova York, fruto do relacionamento com a figurinista Claudia Kopke.

Luc se descobriu bissexual aos 15 e aos 22, transexual. Hoje, aos 25, Luc – nascido Luíza – mora em Washington, exerce a advocacia e é casado com Nicholas, também transexual.

“Uma novidade desse tamanho sempre é surpreendente, mas creio que eu faça parte talvez de uma primeira safra de pais que souberam acolher e tratar com mais naturalidade a questão de forma transparente”, disse Tas, em entrevista à revista Crescer.

“Foi fundamental o contato com o colégio para entender a extensão e consequência da saída dele do armário na adolescência. Para minha surpresa, e até alívio, percebi que casos de homossexualidade e bissexualidade entre adolescentes eram muito mais comuns do que eu imaginava”.

“Sou muito sortudo. A realidade é que minha família sempre me apoiou em tudo. Eu contei que era bi quando ainda era muito novo, e eles nem piscaram. Quanto a eu ser trans, acredito que foi um pouco mais difícil, tanto para mim quanto para eles. (…) Hoje em dia, eles sempre usam os pronomes certos para se referir a mim (ele/dele, etc.) e meu nome (Luc)”, disse Luc, também em entrevista à Crescer.

Segundo Tas os filhos Miguel e Clarice “deram aula” sobre como conduzir o assunto. Aos pais Clarice disse que sempre percebeu que Luc não gostava de usar roupas femininas e que tinha certeza de que ele estava fazendo a coisa certa.

“Eu fico surpreso e até esperançoso de ver como as crianças nos ensinam a tratar assuntos aparentemente espinhosos e complicados de uma forma generosa e elevada”, diz Tas.

A este blog Tas falou sobre o aprendizado com a orientação sexual do filho – “aprendi uma coisa tão óbvia quanto difícil de praticar: que devemos sempre nos guiar pelo afeto. Só assim temos chance de superar o estágio de atraso e preconceito que vivemos no Brasil, um país aparentemente liberal mas extremamente violento quando o assunto é sexualidade”.

E de quebra sobre os desafios do CQC, que anda com a audiência em baixa. “Audiência menor é a fase atual não apenas do CQC mas de toda TV aberta. Aliás, de uma forma mais ampla, de todos os veículos inclusive de jornais e revistas que vivem hoje uma fase de audiência menor do que já tiveram no passado. O motivo é tão óbvio quanto pouco encarado com profundidade: o público leitor e telespectador tem novas telas e um novo comportamento diante delas”.

*

Você disse que a sexualidade é assunto que nos desafia desde que o mundo é mundo. O que aprendeu em termos de sexualidade com esse processo do Luc?

Não conheço um ser humano- independente de ser hetero, gay, trans ou bi- que não tenha conflitos em relação à sua sexualidade. Antes de julgar os diferentes, cada um deveria contemplar a própria dificuldade em lidar com o assunto sexo. Com o Luc ampliei minha consciência sobre as questões de gênero e sexualidade. Hoje convivo com mais tolerância e generosidade em relação à vida sexual alheia e à minha própria.

Como entender a ideia de alguém que nasce menino “preso” no corpo de uma menina?

Todos nascemos e vivemos presos a um corpo. A vida é uma correria que tem como prêmio na reta de chegada a finitude do corpo físico. Me parece que o que resta a nós, pobres mortais, é cultivar alguma forma de transcendência para nos safar dessa prisão e aperfeiçoar nossa breve passagem por este mundo. Para alguns, este aperfeiçoamento passa por uma questão de gênero, para outros pela questão religiosa ou pela psicanálise, pelas artes e até pelo trabalho… Quem pode julgar o caminho do auto-conhecimento alheio?

O que foi feito em termos de tratamento hormonal ou intervenção cirúrgica?

Sua pergunta me fez lembrar a resposta da atriz Laverne Cox, que é trans, à grande entrevistadora Katie Couric quando indagada sobre sua anatomia no lançamento da série “Orange Is The New Black”. Laverne educadamente disse que esse tipo de pergunta limita o debate de temas mais amplos. Eu concordo com ela. Ninguém até hoje perguntou ao Tom Hanks se ele tem pau pequeno, por exemplo. Talvez tenha, ou não. E isso não tem tanta importância.

Desde quando Luc está morando nos Estados Unidos e por que? Seria a vida de um trans mais fácil por lá? Ele está namorando um homem?

Luc cursou Direito na PUC do Rio. Em 2012, num intercâmbio nos EUA, ganhou uma importante competição- a Inter American Human Rights Moot Court- entre alunos da American University, em Washington-DC. Conquistou a admiração de uma de suas ilustres professoras, Catalina Botero, relatora da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA. Desde 2013, Luc trabalha diretamente com ela, na sede da OEA em Washington, na defesa da liberdade de expressão e direitos humanos na América Latina. Esta é a razão dele viver na capital dos EUA, onde se casou com Nicholas, seu marido que também é trans.

Laerte é uma inspiração?

Laerte é uma inspiração e um grande amigo. Ou melhor, amiga. Estou sempre pedindo desculpas aos trans pelas minhas dificuldades com os pronomes. Sou um homem antigo, aprendo devagar e espero que eles tenham compaixão de mim.

O que você como pai de Luc aprendeu com tudo isso? O que há em termos de direito LGBT para serem conquistados no Brasil?

Aprendi uma coisa tão óbvia quanto difícil de praticar: que devemos sempre nos guiar pelo afeto. Só assim temos chance de superar o estágio de atraso e preconceito que vivemos no Brasil, um país aparentemente liberal mas extremamente violento quando o assunto é sexualidade. Não estou falando apenas dos direitos LGBT. Falo também de crianças e mulheres que são cotidianamente importunadas por trogloditas, estupradas de forma cruel e sistemática diante dos nossos olhos passivos e atarantados.

Você já fez piada com bissexualidade ou trans? No CQC alguém já fez? Como você reagiu? Até que ponto uma piada pode ser permeada de preconceito?

O CQC faz piada com tudo, inclusive com sexualidade. Não vejo problema nisso. O humor vive de escancarar a dificuldade humana em reconhecer sua precariedade. A única coisa que não se pode admitir numa piada é que ela não tenha graça. O comediante também nunca deve esquecer de rir de si mesmo. Senão ele vira um caga-regras e uma piada egóica dele pode virar tema de debate sub-intelectual.

Sobre o CQC, ouço comentários de que o programa nunca esteve tão ruim. Audiência menor e necessidade de renovação. Que a própria Band estaria discutindo como trazer oxigênio ao programa, e que ele perdeu relevância política e a aura de trazer novidades e polêmicas para a tela. Poderia comentar a respeito?

Renovação é necessidade permanente da TV, mídia gulosa por novidades. Só quero comentar uma característica brasileira curiosa: a dificuldade de lidar com o que permanece. Veja, por exemplo o caso do meu querido amigo Jô Soares. Depois de décadas de sucesso e talento indiscutíveis, ainda tem gente querendo o destruir questionando a habilidade dele como entrevistador. É espantoso e infantil, com a devida desculpas às crianças. Da mesma forma, volta e meia, me chegam comentários de gente irrelevante, que desconhece o ofício do fazer televisão, dizendo de uma suposta irrelevância do CQC.

A história do CQC fala por si. Em sete anos, o programa virou referência no humor e no telejornalismo brasileiros. Influenciou e continua influenciando uma geração de comunicadores e comediantes, revelando uma quantidade indiscutível de talentos.

Entenda, não estou negando altos e baixos inerentes a qualquer atividade artística, especialmente num veículo de alta exposição como a televisão. Audiência menor é a fase atual não apenas do CQC mas de toda TV aberta. Aliás, de uma forma mais ampla, de todos os veículos inclusive de jornais e revistas que vivem hoje uma fase de audiência menor do que já tiveram no passado. O motivo é tão óbvio quanto pouco encarado com profundidade: o público leitor e telespectador tem novas telas e um novo comportamento diante delas.

A TV aberta por conta do DNA “broadcast” dela, de só transmitir, tem uma dificuldade extra em lidar com a nova era digital onde a comunicação é multidirecional. Temos que aprender a ouvir e nos comunicar com o público 24 horas por dia, sete dias por semana e não só na hora do programa. Com coragem e ousadia, a televisão pode encontrar nessa crise uma excelente oportunidade para se reinventar.

Você tem vontade de continuar no programa? Seu talento talvez seja maior que a bancada do CQC…

Estar na bancada do CQC durante todos esses anos tem sido uma tarefa tão honrosa quanto desafiadora. Contracenar com os grandes talentos de uma geração de comediantes é um privilégio precioso. Meu contrato vai até o fim do ano. De uma certa forma, é o final de um ciclo da minha contribuição ao CQC. Antes de tomar qualquer decisão sobre continuidade, quero ouvir a Band. Sou grato à emissora pela forma como fui acolhido. Espero continuar e que nossos planos sejam convergentes.

Quais seus planos para o futuro? Gostaria de apresentar uma atração própria?

Não tenho, de verdade, o sonho da atração própria. O meu plano sempre é o mesmo: me divertir e ser desafiado pelos projetos onde atuo. Creio que os grandes desafios atuais são: usar a internet para aperfeiçoar a comunicação com jovens e crianças; e fazer TV e rádio para todas as gerações. Como se diz por aí, o futuro já é.

Que tem achado do encolhimento da programação infantil na grade da TV aberta?

As emissoras estão dando um tiro no pé, deixando de conquistar o futuro telespectador. Boa parte da culpa desse verdadeiro crime que é não atender as crianças na TV aberta é de um grupo de bem intencionados que conseguiu barrar a publicidade para as crianças. Não sou contra a regulação da publicidade. A pura e simples eliminação dela é um pensamento paternalista que envia o seguinte recado: atenção senhores pais, voces não tem competência para educar seus filhos, nós vamos fazer isso por voces. Sou cotidianamente abordado por populares que me assistiam no Rá-Tim-Bum dizendo que hoje não tem uma emissora aberta para deixar seus filhos assistirem TV. São os sem TV por assinatura, órfãos dos bem intencionados.

Sobre as eleições, que está achando da campanha presidencial?

Foi uma campanha de baixa qualidade. Parecia briga de vizinho ranzinza que só discute picuinha. Candidatos engessadinhos, alguns chatíssimos ou simplesmente burros. Comunicação e dicção no nível da mocinha do telemarketing. Continuamos no império dos marketeiros e da maior aberração da mídia mundial: o tal horário eleitoral que não tem nada de gratuito. Para sacramentar essa bobageira, a infeliz Lei Eleitoral que agora censura até a Internet, impede o livre debate justamente na hora que a gente mais precisa dele. Infelizmente, a democracia brasileira está andando de lado, na melhor das hipóteses.

Não é uma loucura que o Maluf quase tenha concorrido a esta eleição? Gosta da campanha do Tiririca?

O Tiririca, antigo palhaço genial da TV, se tornou um oportunista que faz Maluf parecer um novato. Loucura mesmo são os inúteis candidatos nanicos. Sempre me sinto pagando algum pecado a Papai do Céu quando tenho que aguentar o blablablá de Levy Fidelix ou Luciana Genro.

Gosta de alguma campanha? Será que a campanha na TV não tinha que ser abolida?
Vale registrar a espontaneidade e humor do Eduardo Jorge. Pena que o partido dele, o PV, seja tão trivial e insosso como os outros. Sobre abolir o horário eleitoral, acho uma grande ideia. Sou a favor do Voto Distrital que resolveria parte dessa bizarrice eleitoral.

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Fernando Meirelles: por que decidi apoiar Marina

Por Morris Kachani
24/09/14 15:47
(Foto: Zé Carlos Barretta/ Folhapress)

(Foto: Zé Carlos Barretta/ Folhapress)

“Dilma e Aécio são cabeças desenvolvimentistas e centralizadoras, vejo-os como criaturas do século 20”.

“Partidos no Brasil, não significam nada”.

“O forte (da campanha de Marina) é a mensagem e não a produção como no programa do PT que por ser muito rico é também muito bem realizado. Agora no segundo turno, com 10 minutos para cada candidato o equilíbrio deve favorecer a Marina que não precisará gastar seu precioso tempo desmentindo o que foi inventado. Se com 1/5 do tempo e 1/5 do dinheiro ela ainda se mantém em primeiro lugar nas pesquisas quero crer que no segundo turno, com equilíbrio de tempo, a situação fique mais favorável”.

“Dilma prometeu que faria o diabo na campanha e ao menos esta promessa está cumprindo. Até amigos petistas se dizem constrangidos com a truculência desleal. Outro dia li uma frase que resume bem esta campanha do PT:  ‘Uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade’, a frase vinha assinada por João Goebbels Santana (sic). Foi na mosca, é exatamente dali que vem a inspiração do marqueteiro-mor. Como se pode votar numa candidata cujo principal colaborador é um marqueteiro que lhe aconselha a mentir e ela obedece?”.

Engrossando o time de artistas que apoiam Marina Silva, como Wagner Moura, Gil, Caetano, Marcos Palmeira, Adriana Calcanhoto, Arnaldo Antunes, Maria Fernanda Cândido, está o cineasta Fernando Meirelles, diretor, entre outros, de “Cidade de Deus” e “Blindness”, e sócio da produtora de filmes 02.

Muito se tem especulado sobre a participação de Meirelles na produção dos filmes da campanha. O cineasta afirma que está acompanhando a campanha “por tabela”, pois no momento está rodando uma mini-série em Brasília, e o tempo vago disponível é pouco.

Interlocutores de Marina dizem que o cineasta está prestando uma espécie de consultoria informal para a equipe comandada pelo argentino Diego Brandy, responsável pelos programas de TV. Segundo a Veja, por exemplo, Meirelles sugeriu que a vida pessoal de Marina fosse abordada com mais ênfase.

Em 2010, quando foi candidata ao Planalto pelo PV, Marina contou com o apoio de Meirelles, que dirigiu uma de suas peças na TV, com pouco mais de um minuto.

Quanto à mini-série que está sendo rodada, chama-se “Felizes Para Sempre”, escrita por Euclydes Marinho. É uma espécie de adaptação livre de “Quem Ama não Mata”, uma mini-série do mesmo Euclydes Marinho, dos anos 80. “A história se passa em Brasília porque faz tempo que eu queria filmar aqui. A cidade é linda e ninguém conhece nada fora os monumentos. É uma história sobre relacionamentos com um crime passional no final. Mentiras, desejos, dilemas morais”, explica Meirelles.

* 

Que está achando do quadro da sucessão presidencial?

Estou achando bom ver a disputa entre PT e PSDB perder o protagonismo nestas eleições. Vença quem vencer, o fim da polarização pretendida pela Marina já foi alcançada. Disseram que seria impossível quebrar essa lógica mas a história, como uma fila, anda.  Boas ideias e boas cabeças ainda são detonadas apenas por virem do campo “inimigo”, isso tem que acabar.

Como você se define politicamente?

Se a pergunta se refere a direita ou esquerda acho que fico fora deste mapa. Votei no Lula muitas vezes, mas quando vi que o sistema de troca de cargos por apoio havia sido institucionalizado por ele deixei de votar no PT. Hoje busco candidatos que tenham propostas interessantes principalmente para educação e meio ambiente.  Meu deputado será o Ivan Valente, do PSOL, meu senador será do PSDB, para presidente a Marina. Vou pelo perfil do candidato e pelo programa. Partidos no Brasil, com este sistema de loteamento de cargos e alianças partidárias, não significam mais nada.

Como enxerga o Brasil hoje?

Enxergo o Brasil com certa ansiedade por duas razões: a primeira é que, segundo o IBGE, o Brasil está dentro de uma janela demográfica muito favorável, nossa população deixou de crescer e por um período curto teremos menos crianças e menos idosos para sustentar, e a maior parte da população, ativa. Foi nesta situação que  muitos países da Europa conseguiram enriquecer no século 19. Sempre que se vê países que deram um salto em seu desenvolvimento constata-se que este salto foi dado dentro desta janela  demográfica. Esta é a nossa hora.

O problema é que para darmos este salto, mais do que portos ou pré-sal, precisamos de educação e é daí que vem a minha ansiedade, a educação no Brasil está patinando há uma década. Até o final dos anos 90 conseguimos universalizar o acesso a escolas mas o próximo passo, que seria melhorar a qualidade do ensino, não aconteceu. Foi frustrante olhar os resultados do último IDEB publicado no mês passado.

A janela demográfica brasileira terá seu ápice em 2025 e se fecha por volta de 2055 quando então passaremos a ser uma nação com mais idosos e com o custo que isso implica.  Se nos próximos 15 anos não dermos uma virada no sistema educacional do país poderemos perder este bonde e estaremos condenados a ser uma nação sucateada.  Ao ver como estão nossas escolas minha ansiedade se justifica. O relógio está correndo.

A segunda razão da minha  ansiedade é ver a maneira como temos lidado com o meio ambiente. Uma árvore na Amazônia  capta em média 500 litros de  água do solo e joga na atmosfera através da “transpiração”, criando os rios aéreos que irrigam não só a maior parte do Brasil mas toda a América Latina  a oeste dos Andes, ou seja,  cada árvore derrubada  na Amazônia significa 180 mil litros a menos de chuva no país no ano seguinte, mas continuamos cortando. Ironicamente, são justamente os que mais dependem desta água, os ruralistas, que fazem pressão para poderem abatê-las ou não ter que replantá-las.  Não sei qual a dificuldade de se entender que derrubando as torneiras lá no norte secaremos o país. A tendência é termos mais secas como esta que estamos vivendo em SP, não vai ser bonito.

Por que decidiu apoiar Marina?

Apoio a Marina justamente por que sei que ela compreende essas questões. Ela sabe que combater o aquecimento global e preservar as florestas não é um cacoete poético de eco-chatos, mas uma condição vital para o nosso futuro. Como educadora a Marina também conhece as deficiências da nossa educação e fala em criar uma “escola que ensine”, o que parece um pleonasmo, mas não é. Sua escudeira, a Neca Setubal, trabalha com educação há 25 anos e tem ideias muito boas para dar um “sacode” nas nossas escolas. Aliás, o bom time que a rodeia  também é razão para eu dar meu voto. A Marina tem bom senso, vê os brasileiros não só como números mas como indivíduos que tem uma psique, faz diferença pensar em cidadãos e não em massa de eleitores ao olhar para o país.

Como foi essa aproximação?

Durante a campanha “Florestafazdiferença,”  que tentou combater as mudanças nocivas aprovadas pelo novo Código Florestal , me aproximei de pessoas ligadas a Marina e vim a conhecê-la. Sua visão do país a longo prazo e seu pensamento estratégico me encantaram de cara como encantam a todos que tem a oportunidade de escutá-la sem pensar nas bobagens que tentam colar nela.

Como tem se dado esse apoio ou seja, em que medida está participando da campanha?

Como estou rodando uma mini-série em Brasília não estou perto da campanha, acompanho por tabela. Raramente consigo assistir o que vai ao ar por causa do horário. Rodamos todos os dias até às 11 da noite.  O que vi foi pela internet. O forte é a mensagem e não a produção como no programa do PT que por ser muito rico é também muito bem realizado. Agora no segundo turno, com 10 minutos para cada candidato o equilíbrio deve favorecer a Marina que não precisará gastar seu precioso tempo desmentindo o que foi inventado. Se com 1/5 do tempo e 1/5 do dinheiro ela ainda se mantém em primeiro lugar nas pesquisas quero crer que no segundo turno, com equilíbrio de tempo, a situação fique mais favorável.

Quais os pontos fortes e pontos vulneráveis de Marina e da campanha de Marina?

Paradoxalmente alguns pontos fortes são também os pontos vulneráveis da Marina. Ela tem alguns princípios e uma coerência interna que não flexibiliza. Isso às vezes complica sua própria vida. Por exemplo, ela não quis apoiar o Alckmin em SP. Teria sido mais fácil apoiá-lo, ela teria tido menos desgaste e quem sabe o Aécio não estaria atacando-a tão pesadamente agora, mas como ela defende uma alternativa ao Fla-Flu entre PT e PSDB, não se permitiu apoiar um candidato de um destes partidos pois seria incoerente. Faz sentido, mas ela pagou um preço alto por isso e sempre paga. Aliás ela perdeu seu cargo de ministra justamente por esta razão, para não ser obrigada a fazer o que condenava. “Perco a cabeça mas não perco o juízo”, disse na época.

Que pensa de Dilma e de Aécio? Do PT e do PSDB?

Ambos tem cabeças desenvolvimentistas e centralizadoras, vejo-os como criaturas do século 20. Ficaram para trás, o mundo já não é mais o que imaginam, as decisões não vem mais do centro, hoje o mundo funciona em rede.  Fora isso, o  PT e o PSDB, sabe-se lá por que razão, nunca conseguiram se unir pelo bem do país, criando espaço para o que há de pior na política se transformar no fiel da balança e dar as cartas no jogo do poder. Ganhando PT ou PSDB sabemos que lá estarão novamente Sarney, Renan, Barbalho, Alves e esta turma que tem atrasado o país. Tanto faz se vencer um ou outro pois em ambos os casos será o Sarney quem vai indicar o ministro das Minas e Energias de qualquer maneira. Estou fora.

Quando a Marina fala em sair deste Fla-Flu o que está querendo fazer é o que deveria ter sido feito há 10 anos, juntar o que há de melhor nestes dois partidos e dar um chega para lá no PMDB, que vive dependurado no poder. Numa de suas falas ela chamou esta turma de “sequestradores dos sonhos do PT” e concluiu que o PT sofre de síndrome de Estocolmo, se apaixonou pelo seus sequestradores. Faz sentido.

Sem reforma política não corre o risco de, se eleita, Marina se ver obrigada a compor com os velhos caciques da política para conseguir uma condição mínima de governabilidade?

Pelo que entendi, se eleita , a ideia será buscar apoio a pontos do programa e não apoio partidário. Não haverá a “base aliada”. Mesmo assim ela conta com uns 180 parlamentares que a apoiarão, mais uns 250 que podem ir e vir e segundo li, uns  106 que não votarão com ela de maneira nenhuma.  Isso é bem melhor do que tinha o Collor quando assumiu e pelo bem ou pelo mal, ele conseguiu mexer em alguns vespeiros. Se eu tiver que acreditar que não se governa no Brasil sem o Sarney prefiro me mudar para a Mauritania.

A Marina está disposta a esvaziar o super-poder dos caciques e sabe que não será fácil, talvez tenhamos muitas crises no começo de um possível mandato pois ninguém perde seu poder impunemente,  mas acho que valerá a pena estas crises. Ninguém faz um omelete sem quebrar os ovos, temos que passar por isso uma hora ou outra, nem PSDB e nem PT tiveram coragem ou conseguiram defenestrar a turma lá, torço por ela.

O que há para ser feito em termos de política áudio-visual no Brasil?

Desde 1993, quando foi criada a lei do áudio-visual,  as políticas públicas para o setor vem sendo aperfeiçoadas. A criação da Ancine,  o Fundo Setorial do Audiovisual, a Lei da TV Paga são iniciativas acertadas.  Evidentemente há inúmeros ajustes de rota a serem feitos mas hoje o audiovisual  já representa 0,48% do PIB, isso é mais do que a indústria farmacêutica e 3 vezes mais do que o turismo gera no Brasil.  Escolas de cinema foram abertas por todo lado e ha um exército de jovens profissionais com formação entrando no mercado.  Alguns colegas vão discordar mas, apesar de precisar de acertos, não é aí que moram os problemas do Brasil.

Como avalia as campanhas políticas na TV? Que tem achado da campanha de Tiririca por exemplo?

A maneira de se fazer campanha no Brasil precisa ser reformada a começar pelas regras de financiamento. A troca de financiamento por contratos ultrapassou todos os limites do razoável. Me desculpe o Tiririca que tenta ser engraçado, mas a atuação da JBS, da Odebrecht, da OAS, da Andrade Gutierrez , da Camargo Correa e de suas co-irmãs em campanhas políticas, é que é uma piada.

Quanto ao Tiririca, nunca escondeu que é um palhaço, aliás uma profissão que tem seu encanto, neste sentido ele faz uma campanha muito honesta. Se um palhaço deve ou não estar no Congresso, cabe aos eleitores e não a ele decidir. De qualquer maneira nós o vemos ali e se nos recusarmos a aceitá-lo, isso é como recusar a aceitar que o rei está nu.

O marketing político enquanto estratégia para se ganhar mais votos – isso é salutar para a democracia?

Da maneira como tem sido usado não é nem um pouco salutar, hoje o marketing e a mentira se confundem na política.  A mentira como estratégia de campanha pode até funcionar por um tempo mas não se sustenta a longo prazo e não constrói uma nação. Mas nem todos pensam assim. Outro dia li uma frase que resume bem esta campanha do PT:  “Uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade”, a frase vinha assinada por  João Goebbels Santana (sic).  Foi na mosca, é exatamente dali que vem a inspiração do marqueteiro-mor. Tanto Goebbels como nosso Santana acreditam que a força da repetição gera um fato.  Mais  impressionante é  ver como a presidente se presta às ideias que ele lhe empurra goela abaixo, tenho certeza que ela faz isso com certo constrangimento.  Se bem que ela prometeu que faria o diabo na campanha e ao menos esta promessa estácumprindo. Até  amigos petistas se dizem constrangidos com a truculência desleal.  Como se pode votar numa candidata cujo principal colaborador é um marqueteiro que lhe aconselha a mentir e ela obedece?

Em 2005, você próprio concedeu uma entrevista dizendo que fez campanhas para o PMDB e o PT nos anos 80, e que recebeu parte do dinheiro sem emitir nota fiscal. Na entrevista, disse que nunca mais faria programas políticos. No entanto produziu uma peça para Marina em 2010 e agora atua como uma espécie de consultor informal.

É fato. Nos anos 80, moleque, fiz um programa político para o PT e uma campanha para o Álvaro Dias, então candidato do PMDB a governador do Paraná. Em ambos os casos recebi uma parte do que que era devido sem emitir nota, como fazem alguns dentistas. Era assim que funcionava com todos os partidos.

Ao sabermos que  um recibo bastaria ficamos com o pé atrás e por esta e outras razões criou-se uma crise entre a garotada que estava junto comigo e o PMDB, e o trabalho foi terminado num clima muito tenso.

No ano seguinte pagamos o imposto devido e uma enorme multa e de fato resolvi nunca mais trabalhar com política e não trabalhei. Na verdade esta entrevista que você menciona nem era uma denúncia, até porque esta era a prática corrente nos anos 80, eu estava apenas respondendo uma  pergunta do jornalista  sobre o por que de nunca mais ter feito programas políticos.

Minha ajuda na campanha da Marina em 2010 foi voluntária, queriam contratar a minha produtora, com nota, mas preferi não participar, o pouco que fiz foi como uma doação, não remunerado. Qualquer coisa que eu  venha a fazer ligada a partidos será por convicção, nunca mais como trabalho profissional.

Como te soa o fato de Marina ser evangélica?

Não tenho problema nenhum com isso. Só faltava começar a discriminar a fé alheia. Já fizeram isso na Alemanha, na Irlanda e em muitos outros lugares ao longo da história e nunca deu certo. Ha evangélicos retrógrados, católicos retrógrados e ateus retrógrados. Porque conheço um ateu que é um imbecil não posso concluir que todos os ateus sejam imbecis.

Recentemente houve uma mudança no seu programa de governo, sobre a questão dos direitos LGBT.

Foi um grande vacilo ter mudado o texto mas o fato é que o programa do PSB, mesmo sem a criminalização da homofobia, avança na defesa das minorias. Em termos de recuo o governo foi mais longe que o PSB quando recolheu o famoso “kit-gay” por pressão da bancada evangélica, de quebra ainda deu um belo prejuízo ao recolher material já pronto para a distribuição. O fato é que  embora  totalmente razoável, o combate a homofobia está longe de ser um consenso no Brasil. Aliás, para saber como a Marina sempre se portou diante da questão, vale ler este depoimento de um petista: http://terramagazine.terra.com.br/blogdaamazonia/blog/2014/08/28/marina-pode-ser-elo-dos-religiosos-com-o-movimento-gay-diz-lider-lgbt-do-acre/

E mais uma: li hoje que a Marina Silva saiu numa lista do “The Guardian” das 50 pessoas que podem mudar o mundo. Certamente isso se deve a sua postura em relação ao meio ambiente. O Brasil poderia conseguir um protagonismo no mundo sob sua presidência, coisa que Lula tentou sem sucesso. Por outro lado, na cúpula do clima em NY ontem, Dilma se recusou a assinar um documento se comprometendo a acabar com a derrubada de florestas.  Até onde vai a cegueira e falta de visão estratégica deste governo?  Quando falo em visão do mundo do século 19 não estou fazendo frase de efeito. É de uma pobreza atroz.

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Pela polarização PT - PSDB

Por Morris Kachani
18/09/14 14:31

522100.jff (1)Para Fábio Wanderley Reis, 76, um dos principais cientistas políticos do país, a polarização PT – PSDB pode servir de base para a construção de um sistema partidário simplificado e consistente, com um resultado democrático mais sólido, desde que a reforma política entre em pauta, permitindo ao presidente a chance de eleger a maioria no Congresso, sem ter que recorrer ao clientelismo pragmático.

Reis é doutor pela Universidade Harvard e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Enquanto pesquisador, se dedicou a temas como a transição democrática e o processo eleitoral brasileiro.

Em sua visão, Marina Silva reúne toda uma série de fragmentos em torno da imagem de um ideário ingênuo e confuso, em conexão com as manifestações de junho de 2013.

“Temos que jogar o jogo democrático eleitoral num quadro que certamente envolve limitação do ponto de vista da qualificação do eleitorado. Vejo no manifesto de apoio a Marina Silva o anseio a um processo político em que presumivelmente haveria governantes sensatos eleitos por eleitores sensatos. Ora, isso não existe”.

“O que é mesmo a Marina? Uma porção de coisas. Ela exerce atração por motivos muito diversos, ela é ambientalista, evangélica, é um Lula em certo aspecto da trajetória de sua vida, sua singular honestidade pessoal é marcada”.

“Marina é sim uma incógnita, mas traz, potencialmente, coisas positivas. E também incertezas. Marina representa a pós-esquerda em certos casos, os reacionários em outros, como se fosse uma derivação mais à direita, acomodada em certos interesses empresariais”.

Reis, que já votou em FHC e de Lula, revela inclinação por Dilma, apesar de todas as reservas. “Não gosto nem um pouco dela como líder e candidata. Dilma revela simplesmente a força do Lula, que transformou em presidente alguém absolutamente inviável, incapaz de se afirmar por si mesma, com dificuldades de se impor inclusive como liderança. Dilma era efetivamente um poste, mas obviamente hoje já tem um certo público fiel”.

*

Como enxerga o quadro da sucessão presidencial?

A questão é até onde vai a possibilidade do eixo potencial entre PT e PSDB, ajudado por aliados espúrios fiéis ao modelo existente, ou se emergem lideranças de outro tipo, sem conexão partidária mais clara, com eventual ruptura deste modelo.

Estamos vivendo um indício muito claro com o surgimento de Marina. O que é mesmo a Marina? Uma porção de coisas, ela exerce atração por motivos muito diversos, ela é ambientalista, evangélica, é um Lula em certo aspecto da trajetória de sua vida, sua singular honestidade pessoal é marcada e faz uma conexão com as manifestações de junho de 2013. Mas tenho uma visão muito restritiva das manifestações.

Por que?

Acho que aquilo foi supervalorizado do ponto de vista do significado da coisa. Nas manifestações com maior concentração de pessoas, chegou-se a um número que representava 0,5 % do eleitorado ou da população. Foi uma movimentação em que o aspecto fútil ficou bem claro em certos instrumentos de mobilização e redes sociais disponíveis. Fútil no sentido de que era uma mobilização sem compromissos reais com objetivos reais. Havia ali de tudo. Um certo antipoliticismo, claramente ingênuo e que não se sustenta, levando impedimento aos partidos. É bem significativo o fato de que isso não teve condições de se aguentar.

E Marina?

Marina foi a única liderança política que escapou e se saiu bem, a coisa da antipolítica ela personaliza bastante. Ela reúne toda uma série de fragmentos em torno da imagem de um ideário que me parece confuso, com o propósito de romper aquilo que ela vem chamando de polarização negativa. Acho um equívoco ver isso como algo negativo.

A polarização não é necessariamente negativa?

Não, acho importante construir um sistema partidário simplificado e consistente, como nos Estados Unidos por exemplo. É preciso claro excluir o presidencialismo de coalizão (termo cunhado por Sergio Abranches). O PMDB é muito poderoso, temos um clientelismo pragmático.

No caso do Brasil, apesar de sermos presidencialistas, raramente nas eleições para presidente são eleitos membros para apoio adequado no Congresso. Ao invés disso, o mandatário está permanentemente envolvido em barganhas.

Num sistema partidário consistente e simplificado, diferente do presidencialismo de coalizão, um presidente que se elege teria chance de eleger a maior bancada no Congresso.

Como acabar com o presidencialismo de coalizão?

Com uma reforma política, no sentido de fortalecer os partidos. Com a ideia de você tentar restringir a proliferação das famosas legendas de aluguel, legislar no sentido de que tenhamos os partidos controlando as candidaturas. Isso envolve também o voto em listas.

Talvez a grande interrogação seja exatamente o que tem havido de positivo na dinâmica que a gente tem vivido, se há condição de persistir este sistema. E aí faz sentido a incerteza da Marina, que é sim uma incógnita, mas traz, potencialmente, coisas positivas. E também incertezas. Ela representa a pós-esquerda em certos casos, os reacionários em outros, como se fosse uma derivação mais à direita, acomodada em certos interesses empresariais.

A provável disputa entre duas mulheres (e espero não estar errado), uma branca e outra negra, é claramente positiva em certa ótica. Os EUA demorarão décadas para que algo semelhante possa acontecer.

 A quem declara seu voto?

Como maior de 70 anos, e cientista político, meu voto é irrelevante. Mas apesar de todas as reservas, como liderança pessoal, a Dilma me inspira.

Não gosto nem um pouco dela como líder e candidata, ela revela simplesmente a força do Lula, que transformou em presidente alguém absolutamente inviável, incapaz de se afirmar por si mesma, com dificuldades de se impor inclusive como liderança.

Dilma era efetivamente um poste, mas obviamente hoje já tem um certo público fiel – no Nordeste por exemplo sua popularidade não se abalou, apesar da entrada da Marina. Preferia ver continuidade no enfrentamento PT X PSDB. O partido que ocupou a posição da social-democracia acabou sendo o PT, com o PSDB sendo empurrado para a direita.

Como se define politicamente?

Procuro entender meu trabalho e a maneira como olho as coisas sobretudo como analista, com certa equidistância e um esforço de acuidade de alguém treinado em ciências sociais e políticas. O que não significa que não tenha simpatias e inclinações, digamos de centro-esquerda. Por exemplo, votei no FHC e na eleição seguinte votei no Lula. Na juventude, como muitos, nutri fantasias de uma esquerda mais radical, mas agora faço uma apreciação mais madura e uma avaliação mais crítica dos equívocos e das fantasias daquele tempo.

Quais são os equívocos e fantasias?

Sem pegar em armas, militei contra a ditadura. Não cheguei a ser preso, mas sofri cassação branca – tive dificuldades em sair do país por exemplo, para defender minha tese de doutorado no exterior.

Um ponto saliente nos debates da imprensa são as pessoas que pegaram em armas contra a ditadura, uma certa fantasia que admitia a violência. Na minha experiência como militante do PSB, num certo momento isso se transformou em algo mais radical, um ideário propriamente revolucionário para liquidar o que seria inerente ao sistema capitalista.

Sou desde muito tempo, contra a ideia de dissociação entre crime político e crime comum. O fato de ter ideias na cabeça não te dá direito a sair matando. Essa ideia foi posta em prática no exílio do Cesare Battisti.

E quais seriam os equívocos e fantasias de hoje?

Se a gente está comprometido com democracia, temos que jogar o jogo democrático eleitoral num quadro que certamente envolve limitação do ponto de vista da qualificação do eleitorado. Vejo no manifesto de apoio a Marina Silva o anseio a um processo político em que presumivelmente haveria governantes sensatos eleitos por eleitores sensatos. Ora, isso não existe, em qualquer lugar do mundo.

Em qualquer lugar do mundo?

Só que no nosso caso somos singulares, passamos séculos construindo uma sociedade escravista, singularmente desigual. Sabemos que houve escravidão mas não estamos atentos às implicações disso. Temos uma parte majoritária da sociedade amplamente marginal, sem acesso adequados a bens materiais e educacionais.

Os Estados Unidos também passaram pela escravidão.

Só que nos Estados Unidos o sul perdeu a guerra. Aqui a escravidão prevaleceu, se desdobrou e penetrou na estrutura social inteira. Bem ou mal nos Estados Unidos houve uma guerra civil. Aqui, apesar daquela coisa idealizada da miscigenação proposta por Gilberto Freyre, o processo foi mais brando, o que implicou uma permanência e penetração que é singular.

O Brasil avançou muito socialmente, nos últimos anos.

Não é fácil encontrar países com grau de desigualdade como o Brasil.

Mas vejo um período afortunadamente positivo, primeiro com o governo FHC, em seguida com Lula, e nessa ordem. FHC foi importante para depois haver um aprofundamento social por parte do governo Lula. Com isso temos uma certa melhoria.

Você se dá conta disso pegando dados sérios como IBGE, emprego, acesso ao crédito, nível do salário mínimo. As universidades que eram branquelas hoje são mulatas, é inegável o avanço.

Mas é preciso ver o que tem de limitador, como o acesso precário à educação. Temos uma conjuntura aberta a formas populistas, com o componente fraudulento de manipulação. A operação da democracia se dá em condições sociais precárias.

É preciso distinguir o populismo tradicional do elitista, com o povão como massa de manobra. Lula, que bem ou mal é um líder mais autêntico, de origem análoga, revela um compromisso mais nítido com metas sociais. No seu caso poderia se falar de um populismo mais autêntico entre aspas.

Como o marketing político se entrelaça com esta conjuntura?

Claramente sob um aspecto negativo. Você pode encontrar certezas marketeiras que funcionam, há uma certa consistência populista. Tenho usado uma expressão, que é a “síndrome do Flamengo”. Você não tem uma informação minimamente adequada sobre os problemas relevantes da nação para tomar uma decisão eleitoral. Então é como torcer para um time de futebol popular, no fundo não há razão para torcer por este ou aquele time, a não ser por uma imagem popular que se cristalize. E como o lado popular pode trazer ganho material, como a oportunidade de acesso ao crédito ou ao bolsa família, as coisas se somam.

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Essa tal de "geração projeto"

Por Morris Kachani
12/09/14 15:02
Foto: Vicente de Paulo

Foto: Vicente de Paulo

“Destrinchando um frango, lembrei de você”.

“Eu queria te amar como eu amo meu cachorro”.

O casal abre uma conta conjunta, mas ela só queria saber de sexo.

Superexposição no facebook e no instagram já era, o que vale agora é grupo de amigos de verdade no WhatsApp.

Começar a terça-feira lavando o rosto com os cremes prescritos pelo dermatologista, e encerrar o dia jantando com os amigos, mas sem beber muito.

Uma minissérie dramática sobre o futebol, que nunca saiu do papel.

Alguns dos traços marcantes do nosso tempo como o individualismo exacerbado, a exigência permanente de produtividade ou a falta de foco, inspiraram a obra de estreia da escritora e roteirista Antonia Pellegrino, 35, “Cem ideias que deram em nada” (editora Foz).

Do ponto de vista narrativo, as cem ideias comportam de tudo: jornalismo, pequenas ficções, trocas de emails ou torpedos, e até mesmo uma lista de supermercado ideal para a família.

De forma bem-humorada e um tanto descompromissada, o livro retrata uma geração a que a autora, que é neta do psicanalista Hélio Pellegrino, e colaboradora de Miguel Fallabela e do novelista João Emanuel Carneiro, entre outros, se refere como “geração projeto”.

“São pessoas entre 20 e 40 anos, que vivem, ou desejam viver, das próprias ideias, e para tanto, haja ideia. Mas nem sempre estas ideias têm o tempo e o foco necessário para sua elaboração. Então os projetos acabam permanecendo eternamente projetos”, diz ela, nesta entrevista à Folha.

“Dar em nada tem um charme tosco, em um tempo em que tudo que você faz tem que ser sucesso. A vida não é tão linear. As cem ideias são um negativo desse mecanismo”.

De onde surgiu a ideia do livro? Por que “Cem ideias que deram em nada”?

Eu tenho a sensação de que realizar, hoje, tornou-se mais motivo de alívio que comemoração. São tantos os imperativos neste sentido que, a cada realização, o acúmulo de irrealizados nos espreita. A cada trabalho lançado a pergunta que mais se escuta é: qual seu próximo projeto. É preciso fazer, acumular, gozar, trabalhar, aparecer incessantemente. Isso já seria inquietante o suficiente, mas se soma a este fato uma brutal aceleração do tempo. Então precisamos realizar muito, e rápido. O “cem ideias que deram em nada” é o negativo deste mecanismo. É uma construção para lugar nenhum. As cem ideias que deram em nada são aquilo que não se consegue realizar em sua plenitude. E a ideia do livro veio justamente da consciência deste processo na minha própria vida.

Em que medida este livro é um retrato do seu universo ou digamos, autobiográfico? Estaria ele focado no seu meio social? E que meio social é esse?

Há no livro poucos textos de fato autobiográficos. O que há de autobiográfico é um processo, um mecanismo, um sistema, um jeito de estar no mundo que é meu, mas não só, é de todos nós que queremos tanto. Acho este modus operandi muito característico da certa classe artística, sobretudo carioca, que chamo de geração projeto. São pessoas entre 20 e 40 anos, que vivem, ou desejam viver, das próprias ideias, e para tanto, haja ideia. Mas nem sempre estas ideias têm o tempo e o foco necessário para sua elaboração. Então os projetos acabam permanecendo eternamente projetos. E eu acredito na alegria de inventar projetos que durem uma tarde entre amigos na praia, o problema é quando estas brincadeiras viram mulas-sem-cabeça, perdem o lado lúdico para passar a nos perseguir como fantasmas.

Quanto tempo levou para ser escrito, e em que circunstâncias?

5 meses e dez anos. Porque foi a sacada do título que engendrou o livro, iniciando uma extensa pesquisa em meus arquivos, atrás das minhas ideias que tinham dado em nada – algumas delas já estavam na gaveta há dez anos. Mas isto configura a menor parte do livro. A maior parte surgiu depois deste primeiro impulso, quando começa o trabalho que dura cinco meses, e eu passo a escrever e reescrever outras ideias para formar o conjunto.

Em que medida a ideia do fracasso permeia a obra?

Tem um filme independente de uma dupla de diretores pernambucanos, chamado “Pacific”, de que gosto muito. É um documentário sobre uma viagem de navio entre Recife e Fernando de Noronha. E tem uma cena, à noite, em que acontece uma festa macarena no navio. A camera grava a festa de um balcão no segundo andar, onde duas senhoras estão no primeiro plano. Elas estão exaustas, meio melancólicas. Até que o sobrinho delas chega com uma camereta e pergunta: “como é que tá a festa, tias?”. E subitamente elas se animam e dizem: “está ótima!, tamos aqui curtindo!”. E no momento em que o sobrinho desliga a camereta, ambas são imediatamente lançadas de volta ao seu vazio melancólico. O livro é sobre este vazio, que na nota de coluna social, foi traduzido para fracasso, porque é complicado falar do lugar que esta cena mostra.

Então o livro não são microcontos e pequenas ficções. O livro são as cem ideias. O que amarra aqueles registros tão diversos é o que há de irrealizado, ou irrealizável, naquelas ideias – e não o fracasso. Então, é um livro de ficção cujo eixo é conceitual: são as ideias que deram em nada.

Por onde tem transitado sua cabeça? O que tem visto de bom no cinema, na TV, na literatura?

Não sei quem é o novo diretor filipino nem estou lendo o livro do último peruano bombado em Nova Iorque. Neste momento, leio, como muita gente, “O Pintassilgo”. Desde o nascimento dos meus filhos, há dois anos, vejo o que tem na Apple Tv e aprendi a narrar “Ponyo” plano a plano. Isso pega mal nas reuniões de trabalho, no entanto não tenho mais o desejo, e muito menos a arrogância, de dar conta de tudo. Aliás, foi este distanciamento que me permitiu escrever o livro. Repertório qualquer um pode adquirir a qualquer momento, mas a experiência de ter bebês portáteis dura pouco. Então prefiro rolar na cama com meus filhos e marido, a recitar o line-up do festival de Veneza. Ao mesmo tempo, o nascimento destas crianças deu novos nortes ao meu interesse, e sinto que são investigações de longo prazo. Transitam muito pela minha cabeça questões como o antropoceno e a culinária consciente, e aqui estou falando das ideias de autores como Eduardo Viveiros de Castro e Michael Pollan.

Queria ouvir alguns comentários curtos e certeiros sobre:

– homens e mulheres de hoje: querem que a vida sentimental seja tão descomplicada quanto uma ida ao shopping. Então vivem na montanha russa, quando talvez o que falte seja literatura russa.

– como descreveria o cotidiano de nosso tempo, comparado com o passado: vivemos em um tempo em que é possível a arquidioscese do Rio de Janeiro permitir um ritual de ayahuasca conduzido por dez indígenas no Cristo Redentor. Há não muito tempo cristãos matavam indíos. Sou do time que, apesar das mazelas, reconhece mais avanços que retrocessos. Mas ainda faltam séculos para vivermos todos na Dinamarca.

– filhos e babás: sem babá é quase impossível ter filhos e manter o casamento e trabalhar e ainda fazer a unha. Por isso filho é coisa de terceiro mundo. E se um dia não houver mais terceiro mundo, terá sido extinta a melhor profissão do planeta.

– festinhas: frequento há anos, como qualquer brasileiro, mas me dediquei a elas como poucos. E cansei. Me jogo em situações escolhidas a dedo, com a fúria de sempre. Foram anos destruindo minha reputação, não posso trocar o trabalho de uma vida por um copo de suco verde.

– redes sociais: com elas, quem precisa de jornal para editorializar a vida? Então é uma revolução do ponto de vista da informação, mas muito opressor em termos de sociabilidade. A rede social matou a melancolia do jantar solitário em frente à televisão. Matou o livro na bolsa. A gente hoje se comunica o tempo inteiro, e fala muito sozinho. Eu tento falar o mínimo possível, mas ainda assim observo demais, boa parte das vezes me desconecto com a sensação de ter comido batata frita do McDonald’s. Prefiro silêncio, livro na bolsa e um bom restaurante.

 

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Silas Malafaia: “50% dos homossexuais foram violados quando eram crianças”

Por Morris Kachani
10/09/14 13:17

Pastor Silas Malafaia, leader of the evangelical church in Brazil,  speaks at the "March For Family" demonstration against gay marriage and abortion, in front of the National Congress in BrasiliaPor Tracy Segal

Incrustada no bairro da Penha, na zona norte do Rio de Janeiro, fica a igreja Assembleia de Deus Vitória em Cristo onde fui entrevistar o pastor Silas Malafaia.  Um edifício suntuoso todo trabalhado em mármore com equipamentos de som e vídeo de ponta e uma plateia onde cabem até 8 mil pessoas sentadas. Uma obra faraônica que custou algo em torno dos 30 milhões de reais.

O pastor Silas diz defender o Estado laico, mas levanta uma contradição posto que afirma que o paradigma que rege nossa sociedade é judaico-cristão, e que portanto alguns temas como o casamento gay, aborto, legalização de drogas, adoção por casais homossexuais, destituem a família baseada na moral tradicional e devem ser combatidos com fervor.

“Nós evangélicos somos a favor do Estado laico. Mas uma coisa é a religião, outra é a ideologia cristã. O Estado é laico mas o povo não é laicista. O mundo ocidental é um modelo judaico-cristão. De onde vêm os direitos humanos, a proteção à vida, a monogamia, a escola pública? Judaico-cristão. De onde vem o moderno direito? Das leis de Moisés. Ué, vamos jogar fora então?”

Quanto às manchetes dos jornais após o tweet bombástico em que pressionou a candidata Marina a mudar seu programa de governo para gays, o pastor nega qualquer relação direta com a candidata do PSB e acredita numa armação contra ela – um cavalo de Tróia dentro do próprio partido. O imbroglio acabou envolvendo o desligamento do coordenador do grupo LGBT do PSB, Luciano de Freitas.

“Os caras armaram um cavalo de Tróia pra Marina. Esse é o jogo, dizer que Marina é conduzida por pastores. Mas ela tem vôo próprio.

Eu tenho muitas divergências com Marina. Não se pode querer que todos ajam e pensem como você.  Ninguém consegue impor tudo que quer, e isso que acho que tá faltando para o movimento gay.  Nenhum segmento da sociedade impõe tudo que quer. Certo? Pra nós casamento é macho e fêmea”.

O senhor só vota nela no segundo turno?

Eu sou amigo do pastor Everaldo. Eu dei a minha palavra que votaria no Everaldo. Antes do furacão Marina, Everaldo sozinho marcou 4 pontos na pesquisa. Nós lideranças pensamos que se a gente ajudar, ele chega a 7 ou 8 e se isso acontecer ele se torna uma balança no segundo turno para uma agenda de interesses no jogo político democrático. Só que Marina atropelou Dilma, Aécio. Marina tem um viés político que não tem nada a ver com o Evangelho.

Qual a sua relação com a Marina?

Na minha vida toda eu encontrei com a Marina uma única vez num congresso em Porto Seguro em 2002, onde ela seria apresentada como candidata. A única vez que falei com Marina na minha vida. Nunca mais falei com ela nem pelo telefone. A Marina tem o pastor dela, o pastor Sostenes, que morreu de câncer, uma morte estúpida. Ele a orientava como pastor, não como orientador político. Marina é evangélica mas não tem nenhuma linha em seu plano de governo que venha beneficiar algum pensamento evangélico. E nós não estamos reclamando sobre isso.

O IBGE em 2010 disse que 22% do eleitorado é evangélico. Hoje chegamos a 25%, 27%. Somando-se os católicos praticantes que chegam a 25% a 30%, somos a maioria. Católicos e evangélicos têm uma ideologia parecida em se tratando de drogas, casamento gay e drogas. O que aconteceu? Eu desafio a Dilma e o Aécio a defenderem o casamento gay.

*

Quanto ao Templo de Salomão, recentemente inaugurado pela Igreja Universal, Malafaia aplaude a iniciativa mas enxerga com reticência a conduta de Edir Macedo.

O que você acha do Templo de Salomão?

É um templo muito bonito. Agora não venham me dar uma ênfase que a Bíblia não dá, de que o misticismo ali é melhor. Estola de sacerdote, usar o quipá judaico, isso não está na Bíblia. Paulo detona o rito judaizante. Quanto a construir um templo bonito eu aplaudo, mas querer dar um status quo que não está na Bíblia, não.

Eu tenho pontos de  divergências com a Igreja Universal e com o Edir Macedo. Mas eles tem um trabalho fenomenal quanto a recuperar pessoas.

O Edir Macedo escreveu um livro que se chama “Plano de poder”, onde ele afirma ter um grande projeto de nação, que essa é a vontade de Deus.

Eu acredito no caminho natural. Eu sou contra o discurso de que temos que eleger um presidente evangélico. A igreja não está aqui pra eleger presidente ou governador, a igreja está aqui para fazer a diferença na terra e levar às pessoas o evangelho na terra.

Nós não temos partido evangélico. Tem evangélico em tudo que é partido. Por que somos livres até pra discordarmos entre nós.

*

No passado o pastor Silas Malafaia apoiou o PT, inclusive apareceu no programa eleitoral de Lula em 2002. Mas ao detectar que “eles não perderam o DNA da esquerda”, questiona: “ Olha o programa do PT, o controle do conteúdo da mídia. Que papo é esse? Isso é coisa de comunista.”

O senhor afirma que o PT foi o governo mais corrupto que o Brasil já teve.

Perto do PT o Collor é batedor de carteirinha! Eu ia apoiar o candidato Lindberg Farias, mas depois que o PT começou com a sua perseguição, igual faz nazista, comunista, pra tentar me calar, mudei… Eles estão utilizando a Receita Federal de maneira covarde, como procedimento da pressão.

Mas foi o PT?

O PT. Isso, vem de cima. Vem do alto. Pra tentar me calar. Por que eu fui o responsável junto com a liderança por colocar 70 mil pessoas em Brasília no dia 6 de junho do ano passado e dizer pra meter na cadeia esta cambada de ladrões que são os mensaleiros. 30 dias depois abriram os procedimentos fiscais.

E hoje nós temos evangélicos em tudo que é repartição. Me disseram: “pastor, ordem de cima pra te desmoralizar, pra detonar e arrebentar com tuas duas entidades e calar tua voz”.

Modelos nazistas, comunistas, eles sabem muito bem como fazer. Veja o livro de Tuma Jr., “Assassinato de Reputações”, ele me cita lá antes desse episódio.

*

Tema de maior polêmica que circunda o pastor Silas Malafaia é o projeto de lei complementar 122/06 para criminalizar a homofobia, que ele se orgulha de ter derrotado no Congresso. Sem se assumir homofóbico, diz que se os ativistas gays criassem uma cartilha contra a intolerância ele aprovaria, só que o que fazem “é pra ensinar homossexualismo pra criança de seis anos”.

“50 mil pessoas foram assassinadas no Brasil, 260 são gays. Mais do que gays, foram mulheres, crianças, negros. Um homossexual pode ser assassinado por homofobia, por briga de amor e por assalto. Os malandros ativistas pegam todo este número para inflar. Se um hetero ganha um soco e um homossexual ganha um soco, a lei deve ser igual pra todos”.

Você escolhe ser gay?

Perto de 50% dos homossexuais foram violados quando crianças ou adolescentes. É provado. Mas tem também os que são por opção. Se é estatística eu vou deitar. 66% das lésbicas e 70 % e uns quebradinhos  dos homens gays já se apaixonaram pelo sexo oposto.

Estes são bissexuais.

Então tem que definir uma lei específica pra bissexuais, heteros e homos. Onde nós vamos chegar? Ninguém nasce homossexual. A criança quando nasce tem uma predisposição para herdar características biológicas do sexo que veio.

*

Como em uma cruzada antigay que tem por missão defender os valores cristãos da família, Malafaia é radicalmente contra adoção de crianças por casais gays.

“Eu acredito que uma criança deve ser criada por um homem e uma mulher. Eu não estou falando da minha crença, estou falando da civilização humana. Se querem inventar um novo paradigma para a sociedade humana, eu não sou obrigado. Eu não estou falando de religião. É um jogo. É uma ideologia para mudar o paradigma da sociedade”.

Existe uma conspiração gay?

Existe uma ideologia e eu provo. Eles querem acabar com o dia dos pais e das mães, é o dia do cuidador. Então tem que acabar com o Natal por que tem criança que não ganha presente? Papo furado. Ideologia. É pra substituir, detonar a família tradicional. E eu tenho o direito de ser contra, porque ela perturba a sociedade.

Mas você acha que eles são um risco real?

Filha, eu nunca vi ninguém conquistar nada de uma vez. Olha o que eles estão pregando, a redução da maioridade da responsabilidade sexual, o que abre as portas para a pedofilia. Jean Willys prega que uma criança pode fazer opção de mudança de sexo sem autorização dos pais. Sabe que uma criança não consegue diferenciar entre sugestão, informação e ordenança? Daqui a pouco vem um estudioso com uma pesquisa dos quintos do inferno dizendo que uma criança de 12 anos já é responsável pela sua escolha sexual.

Por que você acha que o Império Romano foi destruído? Promiscuidade.

O senhor é contra a legalização da prostituição também?

Claro. Sou contra casamento gay, aborto… se legalizarmos tudo da sociedade, ela se autodestrói.

*

Quando questionado sobre a legalização das drogas em vários Estados dos EUA, país que ele admira por ser um exemplo de democracia, respondeu com sua ironia característica, onde seu timbre de voz alcança agudos inesperados:

“Deixa a América liberar. Os traficantes da Colômbia estão rindo. O cara começa com drogas leves e depois a turma que vende cocaína,  vende crack.

Eu quero saber se o cigarro e a bebida que são liberados beneficiou a sociedade ou não. A repressão não acaba, mas inibe”.

O cigarro é um bom exemplo, as leis de prevenção diminuíram em 20 % o consumo.

Diferente do cigarro é o efeito da bebida. O que a bebida produz, o dano à sociedade, é 10 vezes maior.

Ninguém está falando da liberação da drogas, mas da legalização. A guerra às drogas gera mais dano do que a droga em si.

Eu tô desconfiado que traficante vai é botar grana. Libera tudo pra ver onde vai parar a sociedade. Então vamos legalizar tudo que é lixo moral da sociedade, ela se autodestrói.

O senhor é a favor da internação compulsória para viciados em drogas?

Não. Se um viciado em drogas entra num estado, comprovado, onde ele perdeu o domínio próprio, perdeu o referencial moral total, aí sim. Por que aí é pra proteção da sociedade.

Mas muitos evangélicos são a favor, inclusive a bancada evangélica.

Nós evangélicos somos a favor de que a pessoa se interne quando queira. Se um pastor ou deputado defende isso, ele não entende nada de livre arbítrio que tá aqui neste livro [apontando a Bíblia].

E a legalização do aborto, que é uma questão de saúde pública?

É uma manipulação danada. Questão de saúde é a da mulher que aborta e que tem nove vezes mais propensão ao suicídio, onze vezes mais propensão a abortar novamente, quatro vezes mais propensão à internação psiquiátrica. Sabe o que é o aborto? Fruto da promiscuidade e da irresponsabilidade do ser humano. Sabe quem fala do aborto? Quem não foi abortado. Sabe a diferença entre você e o feto? O tempo e a nutrição. Isso é falácia. Vamos trabalhar no preventivo para ensinar meninas e rapazes.

Na própria bíblia o adultério consta como pecado e não vejo os evangélicos defendendo a criminalização do adultério como defendem estas questões.

E quem disse que somos a favor da criminalização do homossexualismo, da prostituição e do adultério? Mas aborto é uma vida independente. O ser humano é tão covarde que ele faz do outro uma coisa, a coisificação da vida. Protege-se capim, passarinho, mico leão dourado, que são crimes inafiançáveis, e os caras pregam matar uma vida. Eu tenho vergonha.

*

A argumentação lógica não é o forte de Malafaia, dados científicos são usados para balizar as crenças fundamentadas na moral cristã, mas quando contra argumentado com outros dados científicos ele questiona a manipulação de tais pesquisas.

“Eu sou um pregador muito prático. Não sou pregador de pensamentos filosóficos.”

Em seu discurso o pastor demonstra um largo acervo de citações, alguns um tanto contraditórios como quando utiliza o linguista Noam Chomsky para defender a teoria  criacionista. (http://www.chomsky.info/articles/20051006.htm)

“A palavra tem o poder de criar. A nossa boca é um retrato da nossa alma. O poder da palavra. Um dos maiores cientistas, intelectuais, Noam Chomsky, diz que a palavra é inata ao homem. O que quebra a teoria da evolução”.

Noam Chomsky defende o criacionismo?

Não sei, mas é uma paulada na teoria da evolução.

*

Em um artigo de 2005 o linguista americano Noam Chomsky, durante o governo Bush, criticou o ensino do design inteligente, análogo ao criacionismo, nas escolas americanas. Chomsky afirma no artigo que a hostilidade ao pensamento científico coloca o mundo em risco.

Com um discurso que beira a paranoia de uma conspiração em que a esquerda e os gays querem destruir a sociedade, os valores e a família, ele vê nos evangélicos a missão de salvar a sociedade.

Qual a relação entre a constituição e a Bíblia?

Numa sociedade livre as pessoas têm o direito de basear suas convicções políticas em qualquer processo de raciocínio, seja Marx, Platão, Confúcio, Gramsci ou Jesus Cristo.

O que a esquerda malandra faz? Quando você vem com a ideologia que tá permeada no mundo ocidental-cristão, diz que é religião. Por que a ideologia de Karl Marx vale mais que a de Cristo? A de Karl Marx está falida e a de Jesus está de vento em popa.

Mas Karl Marx não é um pensador da economia, da política e da sociedade?

E eles defendem luta de classe. Eles vão para o debate democrático segundo o que eles creem, nós também. Desigualdade social é uma coisa, dizer que não tem que ter patrão é outra. Promover luta de classe é outra. A esquerda queria combater a democracia contra a ditadura? Conversa. Quem são os ideólogos do PT? Seguidores de Gramsci. Gramsci diz: ganhe o Estado pelo voto e depois controle ele. Querem controlar a imprensa, querem a igreja do PT, o supremo do PT, a receita federal do PT. Acabou o Brasil.

*

Consultei o professor Álvaro Bianchi, livre-docente do Departamento de Ciência Política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), autor do livro “O laboratório de Gramsci” (São Paulo: Alameda, 2008), sobre a citação feita pelo pastor:

“Há duas inverdades nessa declaração. A primeira é afirmar que os ideólogos do PT são seguidores de Gramsci. A segunda é dizer que Gramsci aconselhava ganhar o Estado e depois controlá-lo. Não existe essa afirmação em nenhum de seus escritos nem nada sequer parecido. Gramsci escrevia contra a chamada pequena política, aquela que se reduz às conspirações palacianas, às pequenas manobras parlamentares, à despolitização da atividade governativa, à troca de cargos por votos e à corrupção dos ideais. Hoje as três candidaturas presidenciais majoritárias, estão imersas nessa pequena política.”

A impressão mais forte num embate de opinião com o pastor Silas Malafaia é de impotência, ele parte de um princípio que considera uma verdade absoluta, inquestionável, mas quando perguntado se podemos chamá-lo de fundamentalista sua resposta imediata é não.  Seu discurso maniqueísta remete a uma guerra, de um lado os defensores do modelo judaico-cristão de sociedade com sua moral e a família como base, e do outro a esquerda demoníaca que inclui o grupo LGBT, que não mede esforços para o derrubar.

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"O sistema de justiça está aí para criminalizar a pobreza"

Por Morris Kachani
03/09/14 18:37
Fernando Rabello/ Folhapress

Fernando Rabello/ Folhapress

Por Tracy Segal

A situação do sistema prisional no Brasil pode ser considerada uma calamidade. A população carcerária convive com o desrespeito às condições mínimas de dignidade humana. Um submundo do submundo. Para agravar o quadro, a polícia no país mata 5 pessoas por dia.

Parceira de longa data de Luiz Eduardo Soares, a cientista social Julita Lemgruber que já dirigiu o sistema prisional do Rio de Janeiro durante o segundo governo Brizola e foi ouvidora de polícia durante o primeiro ano do governo Garotinho, hoje coordena o Centro de Estudos de Cidadania na Universidade Candido Mendes. Sua luta é pelo cumprimento da lei. Julita afirma que, na área das prisões, temos uma Lei de Execução Penal considerada exemplar, mas que está longe de sair do papel.

O Brasil tem a quarta população carcerária do mundo, caminhando a largos passos para ser a terceira e um dos grandes problemas é a superlotação que, em alguns estados, chega a níveis tão desesperadores que funciona como combustível para a violência interna que explode em rebeliões. Casos recentes como o de Pedrinhas, no Maranhão e de Cascavel, no Paraná, são exemplos. E, o que é pior ainda, grande parte dos presos está encarcerada ilegalmente.

Como bandeiras, hoje, a professora Julita defende que “se as leis do país fossem respeitadas, não haveria superlotação porque, pelo menos, metade dos presos estão presos ilegalmente, seja como presos provisórios, seja como presos que já deveriam ter sido beneficiados, por exemplo, com a liberdade condicional”.

A outra bandeira que Julita defende hoje é a legalização das drogas, com regulação bastante séria e criteriosa porque “A guerra às drogas provoca muito mais violência do que a violência que supostamente as drogas, hoje ilícitas, podem causar.”

Julita declara seu voto por Dilma e Lindberg. “Não resta a menor dúvida de que os 12 anos de governo do PT tiveram um impacto enorme na redução da pobreza e da desigualdade nesse país.”

No entanto, ela diz votar pela reeleição de Dilma contrariada pelo pouco caso de nossa presidente com a segurança pública em seu governo e os equívocos na área de política de drogas.

“Uma mulher que foi presa e torturada não deu qualquer atenção aos problemas de violência no país (onde acontecem quase 60 mil homicídios anualmente) e nem mesmo ao sistema penitenciário. No caso das mulheres presas, por exemplo, hoje, em 2014, ainda se encontram unidades prisionais onde mulheres usam miolo de pão como absorvente higiênico.”

*

Como resolver o problema do crime organizado no Brasil?

Depende do que se está falando. Na área das drogas, por exemplo, acredito que o único caminho seja a legalização, com regulação. Precisamos lembrar, sempre, que drogas sempre foram consumidas – seja para fins de prazer, fins medicinais ou religiosos. Faz parte da história da humanidade e isto não vai mudar. Então pensar um mundo sem drogas é uma ilusão e vamos ter que conviver com um mundo em que as pessoas vão usar drogas. Hoje a droga que mais causa danos é o álcool, que é uma droga licita. A verdade é que a maior parte das pessoas que usa drogas, e estou falando de todas as drogas, lícitas e ilícitas, não abusa das drogas. Nós convivemos no dia a dia com pessoas que usam drogas e trabalham, estudam, se divertem e não são usuárias problemáticas de drogas. E, para aquelas que fazem uso problemático de drogas, que abusam das drogas, o que precisamos é investir em programas sérios de redução de danos o que não quer dizer internação compulsória. Por outro lado, há programas de prevenção que funcionam muito bem – o Brasil reduziu, nos últimos 15 a 20 anos em 65% o número de pessoas que fumavam cigarros e não se recorreu à proibição.

Você atribui a violência nas favelas a guerra às drogas?

Sem dúvida a violência nas favelas está diretamente relacionada a uma guerra às drogas que provoca um nível de violência absolutamente inaceitável que provoca mortes por todos os lados – mortes de policiais, mortes de supostos traficantes e mortes de pessoas que acabam perdendo a vida simplesmente porque moram nesses locais e são espectadores trágicos de uma estratégia perversa de combate ao crime.

A bancada evangélica no Congresso Nacional seria a responsável por esses excessos na guerra às drogas?

Não diria que a bancada evangélica é responsável pela violência da polícia, mas, claramente, são eles que apoiam sim a internação compulsória e, vale lembrar que muitos deles são proprietários de redes de comunidades terapêuticas que recebem dinheiro público para, supostamente, “curar o vício das drogas” e, em muitos casos, já se encontram comunidades terapêuticas que vendem dois por um e se dizem capazes de “curar o vício das drogas e de ser gay”.  Este certamente foi um dos equívocos do governo Dilma que deu combustível de todo tipo (político e financeiro) para que essa rede de comunidades terapêuticas crescesse ao arrepio da lei.

Pensando no panorama mundial é possível dizer que, nesse momento,  os EUA estão afrouxando a legislação na área de drogas?

Isto é muito interessante porque foram os Estados Unidos que lideraram a chamada Guerra às Drogas, fortemente desde os anos 1970, com o governo Nixon, e agora estamos vendo aquele país passar por transformações incríveis.  Metade dos estados americanos já legalizaram a maconha medicinal. Dois Estados, Colorado e Washington, já legalizaram a maconha recreacional, e agora brevemente Washington D.C., a capital da república, vai votar pela maconha recreacional.

Voltando ao assunto do sistema penitenciário, quem é o preso no Brasil?

O preso no Brasil é pobre, com baixa escolaridade, predominantemente negro. Ou seja, o preso brasileiro faz parte de uma minoria política, sem voz, sem vez na sociedade. Quem tem melhores condições sócio-econômicas e, principalmente, pode pagar um bom advogado, ou ainda, tem recursos para corromper a polícia, não vai preso, exceto em casos muito excepcionais. Aqueles casos que acabam por fazer crer que o sistema funciona pra rico e pra pobre. Mas, sabemos que não é assim. O sistema de justiça criminal está aí pra criminalizar a pobreza. Apenas isto. Não nos enganemos.

Qual a perspectiva da população diante do preso?

É até lugar comum você dizer que a classe média só se preocupou com o preso quando havia representantes da classe média na cadeia, época da ditadura e estamos falando dos presos políticos. Quem está hoje atrás das grades não tem nenhuma importância para a sociedade. O que a sociedade quer? Que as penas sejam agravadas, que rebaixem a maioridade penal.

Que acha da diminuição da maioridade penal?

Rebaixar a maioridade penal não vai resolver coisa alguma. Só agravar. A quantidade de menores que cometem crimes violentos é um percentual muito pequeno, mas quando um adolescente comete um crime violento aquilo ganha um foco exagerado e logo renasce esse discurso sobre a redução de maioridade penal. A verdade é que a maioria dos adolescentes são presos por delitos relacionados a drogas e é bom lembrar que tráfico de drogas existe em todo lugar do mundo e não necessariamente provoca violência. É a chamada Guerra às Drogas que provoca a violência.

Mas as instituições para jovens infratores já são uma cadeia, não é mesmo?

Antes de defender a diminuição da maioridade criminal é preciso defender que o Estatuto da Criança e do Adolescente seja cumprido. Oferecer a estes jovens uma expectativa, investir numa possibilidade de capacitação, para que este sujeito possa ter condições de pensar em disputar um lugar no mercado de trabalho convencional e não apenas na boca da sua favela.

E a polícia?

Nós temos duas polícias (militar e civil) que não se falam, que não conseguem trabalhar de forma coordenada. É uma guerra de poder.

Aqui as polícias não se falam a não ser no Café Comunitário uma vez por mês, que é aquele café com a comunidade para ouvir as reclamações da comunidade. Não existe qualquer trabalho integrado. Precisamos reformar a polícia, pensar, por exemplo, em duas polícias com ciclo completo, como é a proposta que tramita no Congresso Nacional. Ou seja, duas polícias que terão poderes de reprimir e investigar e não duas polícias que competem entre si 24 horas por dia e nem mesmo compartilham informações.

Qual a sua opinião sobre a situação das UPPs no Rio de Janeiro?

Houve a necessidade de se criar alguma estratégia de segurança pública com vistas à Copa do Mundo e às Olimpíadas. E, assim, criaram-se as UPPs. As UPPs não são uma política de segurança pública, mas uma estratégia que visava dar segurança aos grandes eventos.

E as milícias?

As áreas dominadas pelas milícias continuam a prosperar. Quer dizer que a quantidade de esforços direcionada às UPPs foi de tal ordem que isso permitiu que as milícias crescessem.

Já são10 mil policiais nas UPPs. Temos problemas enormes em várias áreas, na Baixada, Niterói e São Gonçalo por exemplo. Se você concentra seus esforços nas UPPs deixa de lado outras áreas. Que fique bem claro – o Rio de Janeiro não tem uma política de segurança pública.

Mas será que as armas apenas trocaram  de mãos nas UPPs?

As favelas viviam sob o jugo de grupos de traficantes que dominavam a comunidade fortemente armados, impondo o terror e agora o domínio passou para a polícia.

As UPPs se transformaram  numa estrutura de dominação do espaço público e são os policiais que ditam as regras do convívio cotidiano.

E a época do Brizola? Ele foi e é uma figura controversa na política. Existem muitas histórias sobre sua relação com o tráfico no Rio de Janeiro.

Neste tema há muitos  equívocos. As pessoas repetem como um mantra que a polícia não podia subir as favelas no período do governo Brizola e por isso a criminalidade tomou conta. Nunca houve uma determinação para que a polícia não subisse o morro. A ordem era: sobe, mas nada de bota na porta do morador, vamos subir mas vamos respeitar essas pessoas. Acho que o tema do respeito a essas populações foi mal entendido e é sempre preciso lembrar que direitos humanos ou valem para todos ou não valem pra ninguém.

Mas hoje a sociedade tem se manifestado contra a violência, não?

Há reações aqui e ali. Em favelas como a Maré ou a Rocinha temos visto reações importantes quando acontecem tragédias como foi a chacina da Maré, que está fazendo um ano e quando nove pessoas foram mortas pela polícia. Também na Rocinha depois do desaparecimento do Amarildo. Mas, a verdade é que só no ano de 2013 a polícia no Rio matou 415 pessoas. A polícia no Brasil mata cinco pessoas por dia. E ninguém parece se emocionar com isto. Essas mortes não mobilizam a sociedade porque quem está sendo morto pela polícia é o pobre, o negro e o favelado – pessoas que, em sua maioria, não tem voz na sociedade. Cadê a população nas ruas se manifestando por causa dessas mortes?

Há dois meses, na favela de Costa Barros um menino de 2 anos foi morto na cama quando a polícia entrou na favela trocando tiros com os supostos traficantes.  Saiu uma matéria pequena, menos de um quarto de página. Por que o caso do Amarildo tomou a proporção que tomou? Por que aconteceu na Rocinha e os moradores desceram para o Leblon e Ipanema – para as áreas ricas da cidade. Aí sim, parece que todos acordaram.

E a privatização dos presídios?

Filosoficamente e ideologicamente é um absurdo.  Se o Estado me tira a liberdade, o Estado tem a obrigação legal e moral de administrar a minha privação de liberdade. Eu sou absolutamente contra a prisão privada. Ademais, esse é um modelo que acaba por alargar, para muito além da necessidade, a oferta de vagas e acaba por provocar um crescimento ainda mais agudo do encarceramento em massa que o Brasil já está perseguindo, seguindo o exemplo equivocado dos Estados Unidos. Claro que o Estado, tem dificuldades, tem que fazer licitação, concurso para os funcionários… A iniciativa privada faz isso muito mais rápido e em muitos casos ainda pega financiamento do BNDES. Eu até já defendi isso no passado – a criação de novas unidades prisionais (jamais privadas) para resolver o problema de superlotação. Hoje tenho clareza de que se a lei brasileiras fossem respeitadas no país, a gente não teria a superlotação. Fizemos através da Associação pela Reforma Prisional, no Rio, durante 4 anos, o mapeamento da situação dos presos provisórios e vimos que dois de cada três presos estavam presos ilegalmente. A gente acompanhou alguns milhares de casos desde o momento da prisão até o momento da sentença e vimos que dois de cada três não recebiam uma pena privativa de liberdade, por que ou eram absolvidos ou recebiam uma pena alternativa. Ou seja, estavam presos ilegalmente. Na outra ponta, existem milhares de presos no Brasil com direito à liberdade condicional e não conseguem o benefício por falta de assistência jurídica adequada.

O sistema penitenciário deveria ser um sistema que visasse a reinserção na sociedade, mas no Brasil isso não acontece, não é?

Mas isso não acontece em lugar nenhum do mundo. Ninguém aprende a viver em liberdade tendo a sua liberdade restrita. Um antigo ministro da justiça inglês dizia que a pena de prisão é apenas uma maneira cara de tornar as pessoas piores. Você vai pra prisão pra ser castigado e o castigo é a privação da liberdade. Não pode ir além disto. O preso é frequentemente vítima de violência dentro da prisão, sua família é desrespeitada e humilhada. A sociedade parece ignorar que esses presos voltarão para a rua. O cara vai preso por desobedecer as leis do país e é preso num lugar onde a lei é descumprida 24 horas por dia. No Brasil não temos pena de morte nem prisão perpétua, então todo preso vai sair e é bom a sociedade pensar nisso. Quanto maior a violência vivenciada dentro dos muros, mais violento ele será quando sair.

Você declara seu voto?

Eu vou votar na Dilma, contrariada, mas vou votar. Tivemos conquistas sociais e não quero que a gente perca um milímetro do que a gente conquistou nessa área. Não tenho dúvida que os 12 anos do governo do PT tiveram um impacto enorme na redução da pobreza e da desigualdade nesse país. Durante o governo FHC houve uma diminuição da pobreza, mas a redução da desigualdade que aconteceu no governo do PT, eu acho que é um patrimônio que este país não pode perder. Eu voto contrariada porque olho muito para a área de segurança pública, evidentemente, e para a política na área de drogas. Ao longo desses 4 anos do governo Dilma a área de segurança pública foi absolutamente ignorada. Ela assumiu a postura de que isso é problema dos governadores, eles que se virassem, e aqui ou ali havia algum aporte de recursos. Isto é inadmissível.

Na área do sistema penitenciário também aconteceu rigorosamente nada.

A gente está no final do governo de uma mulher que foi presa e torturada, e hoje em 2014 em unidades prisionais no interior de São Paulo mulheres ainda usam miolo de pão como absorvente higiênico. No início do governo Dilma havia uma proposta de um grande investimento nas unidades femininas. Não houve. A frustação de quem trabalha nesta área é muito grande. Por outro lado, na área de política de drogas, Dilma não avançou nada. Ao contrário, o governo federal lançou um programa equivocado (Crack é possível vencer) e tornou-se refém da bancada evangélica que prega a internação forçada do usuário problemático de drogas, sem investimento adequados em programas efetivos de prevenção ou redução de danos.

E para governo estadual?

No Rio de Janeiro eu voto no Lindberg. No cenário do Rio de Janeiro ele é o candidato que pode implementar uma política de segurança pública mais alinhada com valores que eu defendo, e como representante do PT, eu acho que também vai haver um investimento que eu quero ver na área social, que a gente não viu nesses últimos anos no Rio de Janeiro.

 

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Comemorar o que?

Por Morris Kachani
26/08/14 18:25

Segurança Pública na Copa e nas Olimpíadas - evento Folha

Um telefonema para Guaracy Mingardi, especialista em segurança pública, mestre em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e doutor pela Universidade de São Paulo (USP).

*

Um amigo meu, estrangeiro, leu hoje no jornal que o governo estadual considerou positivo o número de roubos no Estado e na capital em julho, devido ao recuo no ritmo de alta – em relação a julho de 2013, houve 20,3% mais casos na cidade, enquanto que na comparação com o ano anterior em relação a junho, foi de 21%.

E daí ele comentou, ‘isso é decretar a falência social’.

Não chega a ser isso. Mas comemorar um número tão alto é ruim porque assim o Estado está introjetando esse dado como se fosse natural. E não é natural. Se o número de roubos estivesse estabilizado, eles até poderiam comemorar, com algumas ressalvas. Agora, comemorar a essa altura não dá, porque isso implica que o Estado não consegue controlar o comportamento criminoso. O número de roubos continua aumentando faz três anos.

O que está acontecendo?

Primeiro é preciso lembrar que o furto implica menos risco para a vítima que o roubo, pois ele é feito às escondidas. Já o roubo é o que a gente conhece como assalto, implicando algum tipo de violência.  O que importa dizer é que há dez anos o número de furtos era maior que o de roubos. E no ano passado, o número de roubos de veículos por exemplo, ultrapassou o de furtos. O número de roubos está aumentando de forma geral, e isso é importante porque o roubo implica ameaça, a pessoa corre risco.

Qual a curva de crescimento do número de roubos?

Alguns anos atrás era mais estável, mas começou a crescer vertiginosamente. E o roubo prolifera porque quanto mais o bandido se sente impune, mais pratica.

Onde está a raiz do problema?

Não adianta só fazer patrulha. Se você coloca um monte de policial fardado em um semáforo, o bandido só não vai atuar naquele cruzamento. Ele busca um outro, é simples. Só muda o local do crime. O que é necessário é que haja mais investigação. Identificar e prender. Só isso e mais nada funciona contra o criminoso profissional.

A quantas anda a investigação policial?

Devagar. Nos últimos 30, 40 anos, a Polícia Civil vem ficando cada vez mais burocrática. Preenche mais papel e investiga menos. Então a investigação anda parada. O número de inquéritos produzidos pela polícia é mais ou menos constante enquanto o de crimes aumenta. A verdade é que hoje só são presos ladrões em flagrante.

Como chegamos a essa situação?

Nosso sistema é altamente burocrático. Mesmo quando um bandido é identificado, você precisa de um inquérito de mais ou menos 200 a 300 páginas obrigatoriamente, porque a Justiça pede isso. Eles querem tudo pormenorizado.

O governo atribui o aumento do número de roubos ao boletim eletrônico, que desde o fim do ano passado registra crimes de roubo.

Basta então comparar 2013, quando este sistema ainda não estava em vigor, e 2012. 2013 foi superior a 2012. Não tem jeito, 20% é um aumento muito grande. O novo sistema pode até pesar um pouquinho. Mas há outros fatores. Aumentou o número de bens que as pessoas levam para as ruas, como tablets e celulares, por exemplo.

Qual a diferença do roubo praticado na periferia e nas regiões de classe média?

Na periferia a vítima é mais o transeunte. Nas regiões de classe média, em casa ou dentro do carro.

Como avalia a política de segurança pública estadual?

O que falta é priorização. Em segurança pública o cobertor é curto, não dá pra fazer tudo ao mesmo tempo. É preciso priorizar os crimes que envolvem risco à vida, e roubo é um deles. Esta falha não é desta administração especificamente, é dos últimos 30 anos. Na prática a polícia continua agindo como agia antes.

Na primeira gestão de Covas, vínhamos de Carandiru. Os policiais estavam matando demais e a prioridade era essa. Já no final dos anos 90 os homicídios estavam crescendo pra burro, e então esta foi a prioridade. Mas de lá pra cá não vejo prioridade. Nem o combate ao PCC é prioridade.

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"O Brasil não digeriu a ditadura"

Por Morris Kachani
25/08/14 01:17

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A participação de Marcelo Rubens Paiva na Flip, na mesa sobre os 50 anos da ditadura, emocionou o público, reverberou nas redes sociais e se tornou também objeto de polêmica.

Paiva chorou durante a leitura de um artigo de Antônio Callado sobre a morte e desaparecimento do pai, Rubens Paiva, tendo a mãe, Eunice, como personagem principal. Mais tarde, comentou que não havia chorado só por causa da morte do pai, mas também por conta da paternidade recente –ele tem um filho de seis meses-, e porque a mãe está com mal de Alzheimer.

Durante o debate, Paiva mencionou o cantor Roger, do Ultraje a Rigor, como exemplo de quem desconhece o período da ditadura. No twitter, Roger reagiu dizendo:  “minha família não foi perseguida pela ditadura porque não estava fazendo merda”.

Escritor, jornalista, roteirista e dramaturgo, tuiteiro, blogueiro, com tração das 4 rodas. Assim Marcelo Rubens Paiva, nascido em 59 em São Paulo, se define profissionalmente.

Publicou onze romances entre os quais o best seller “Feliz Ano Velho” (1982, Prêmio Jabuti).

No teatro, teve nove peças montadas como autor, e dirigiu outras cinco. No cinema, roteirizou os filmes “Fiel”, “Malu de Bicicleta”, “E Aí, Comeu?”, “No Retrovisor”, e “Vale Tudo”, esses dois ainda inéditos.

*

Afinal, o Brasil digeriu a ditadura ou o assunto ainda tem seus tabus?

Claro que não. A gente não digere a violência. As pessoas não têm ideia do que foi a ditadura – as pessoas que eu digo são as mais jovens. Quem acompanhou a redemocratização, fez parte da mobilização estudantil no final dos anos 1970, a fundação do PT, a reorganização partidária, as Diretas Já… leu os livros que tinham que ser lidos. Viveu de certa forma a ditadura, então sabia o que que era.

Ponto e parágrafo. Não se falou mais disso.

Não se falou mais disso?

Dos anos 90 em diante, não. Virou um assunto secundário, sem importância. Por exemplo, eu assino o “TV5”, que é o canal francês, e tem o jornal das 20h que todo dia assisto. Sempre estão celebrando alguma coisa referente à história da França. Nessa semana, por exemplo, foi a libertação de Paris. Fez 70 anos (foi em 1944). Existe um culto histórico que os judeus são sábios e precisos em sempre lembrar, que foi o Holocausto. Seja através dos filmes, séries, livros, museu aqui, museu lá…  porque é preciso lembrar sempre, se não em uma ou duas gerações as pessoas esquecem.

No Brasil a gente foi completamente incapaz de transferir o conhecimento do que foi a ditadura para as gerações que vieram em seguida. Então por exemplo: reclama-se muito que nas escolas não se ensina o que foi a ditadura. Não tem livros didáticos que falam. E foi um dos momentos mais importantes da história do Brasil. A ditadura brasileira mudou o país, foi o momento em que o Brasil se transformou de um país agrário em um país industrial, um momento de consolidação da identidade brasileira.

Negligência nossa, negligência dos produtores culturais, e negligência do Estado. No Brasil se fala muito em “virar a página”. Não, não se deve virar a página. A história precisa ser recontada, reanalisada, reavaliada

Houve uma consolidação da identidade brasileira durante o período da ditadura?

Eu acho que sim, em parte. Não foi nem por causa da ditadura. Antes dos anos 70 a maior parte da população vivia no campo. A partir de então isso se inverteu. Então aquele Brasil rural, agrário, caipira, regionalista de Graciliano Ramos e Guimarães Rosa, se tornou o Brasil de Rubem Fonseca, o Brasil urbano, com problemas sociais.

A Lei da Anistia seria um produto dessa negligência de Estado?

Ah, total! A Lei da Anistia é um símbolo dessa negligência de Estado e dessa pouca vontade da sociedade de conviver com seu passado, com os traumas do seu passado. Há muita confusão a respeito do que foi a luta contra a ditadura.

Era Caetano Veloso indo para a cadeia. Chico Buarque indo pra Itália no exílio. João Ubaldo tendo livro censurado. Rubem Fonseca tendo livro censurado. Plínio Marcos caindo no ostracismo. Quer dizer, toda a intelectualidade. Eram professores universitários, era o FHC indo embora, Florestan Fernandes indo embora.

A PanAir sendo fechada para cancelar seus vôos internacionais e dar para a Varig. Era a Globo crescendo em detrimento da TV Excelsior. Enfim, era uma transferência econômica de um grupo pro outro. A ditadura não era só um combate de uma ou outra organização de esquerda. Era o país inteiro que estava sofrendo com aquilo.

Quais são os ecos dessa negligência, que você enxerga hoje na nossa sociedade?

Os desaparecimentos, como no caso do Amarildo por exemplo, o costume de torturar e desaparecer com o corpo, a forma de você tratar…

E também a forma que no Brasil o Estado trata o brasileiro. O brasileiro é sempre o culpado. Nos mínimos detalhes. A burocracia é contra o brasileiro, não a favor. Por exemplo: eu estou tentando comprar um carro, nunca tinha comprado um carro por isenção fiscal de deficientes, um direito que eu tenho. Estou tentando há um ano, e foram aproximadamente uns 40 documentos. Eu tenho que provar tudo o tempo todo. Eu tenho que provar até que eu tenho dinheiro.

Assim, sempre o brasileiro é o inimigo, um criminoso, um combatente. O Estado sempre está preocupado em não ser manipulado pelo brasileiro, não ser enganado pelo brasileiro. Quando devia ser o contrário.

E o jeito de ser do brasileiro?

Eu acho que é isso. De achar o Estado afastado de si. Então por exemplo, nas manifestações de junho: “Todo político é ladrão!! Nenhum partido me representa!!”. Mas quem votou nos políticos? Quem vota nos partidos são os brasileiros. Então como é que você se distancia do Estado? Parece que o povo é uma coisa e o Estado outra, quando na verdade são duas coisas juntas.

Você não se animou com as manifestações de junho?

Não. Desde o começo eu sabia que aquilo era uma roubada. Uma das coisas que a gente aprende na militância é que precisa ter uma pauta definida, uma bandeira. E não tinha bandeira nenhuma. Cada um falava uma coisa. Tinha até gente que propunha a volta da ditadura militar.

Então não dá em nada. Se não é política não dá em nada. Tudo é político. O homem é um animal político, já dizia Aristóteles. Não dá para fazer uma passeata gritando “Fora partidos! Nós somos apolíticos”. Então vocês querem o que? “Queremos o fim da corrupção”. Como é que se faz o fim da corrupção? “Não sabemos como”.

Que acha da Marina Silva?

Não estou animado com a Marina. Não acho que seja uma terceira via interessante. Eu acho que ela tem muitos problemas, ela tem uma pauta muito conservadora.

Em que sentido?

Ah, nas questões da religiosidade dela, dos direitos individuais (casamento gay, aborto), você não vê ela falando nisso. Não é a terceira via. Eu acho o PV muito mais terceira via, nesse sentido. O que diferencia o programa da Marina pro programa do PT e do PSDB? Ninguém sabe. O programa do Eduardo Jorge fala em aborto, em liberação das drogas, em casamento gay, numa revolução de economia sustentável, energética. Isso sim é uma terceira via.

Marina fala de economia sustentável, energética.

Ela fala, mas o partido dela não. Aliás, o meu pai fundou aquele partido né? O PSB. Ele, junto com o Antonio Candido, foi um dos fundadores. Depois foi pro PTB porque não tinha legenda pra sair como deputado.

Você gosta do governo Dilma?

Não. Eu acho uma temeridade você subsidiar indústria automobilística para garantir o emprego da população. Que custo ambiental isso terá no futuro? Acho uma temeridade você, por exemplo, congelar o preço da gasolina para controlar a inflação e ao mesmo tempo dar um rombo na Petrobrás que era a empresa em que toda a economia, todos os fundos de previdência estavam atrelados.

Dilma fez coisas interessantes, mas o próprio partido admite que poderia ter sido melhor, já que o slogan da campanha defende que o segundo mandato será melhor.

E o fato de Dilma ter sido prisioneira política?

Eu acho que isso tem um problema porque ela fica constrangida às vezes, parece, de ir a fundo na exploração da abertura dos documentos. Não sei. Eu acho que ajuda e atrapalha. Vou dar um exemplo ridículo, mas quem menos faz pelos deficientes são justamente os deputados e políticos deficientes. Eles ficam constrangidos de estar pedindo algo como se fosse por causa própria. Os mais atuantes são os não-deficientes. É o mesmo caso da Dilma. Ela fica um pouco assim, numa situação de sinuca de bico ali, de estar diante de seus ministros militares e ao mesmo tempo cobrar que eles abram arquivos, que eles admitam que houve sim tortura nas instalações, coisa que eles não admitiram.

A Lei da Anistia seria a ‘cara’ do Brasil?

A Lei da Anistia é uma lei promulgada durante a ditadura. Ela é de 1979. É pré Riocentro. Ainda tinha linha dura no cotovelo do governo. Foi promulgada num Congresso totalmente engessado pela ditadura. A oposição estava no exílio (ou morta), tinha partidos que estavam na ilegalidade. Muita gente votava nulo naquela época, e é curioso que houve a Constituinte e não se discutiu a Lei da Anistia. A Lei da Anistia é um entulho autoritário, como dizia o velho e bom Leonel Brizola.

Você acha que no Brasil tinha que ser como na Argentina?

Acho. Tinha que ser tipo Argentina. Tinha que ter ditador na cadeia, corrupto na cadeia.

O Brasil melhorou?

Depende. A questão do deficiente físico, por exemplo, melhorou muito. Você não vê mais quase nenhum lugar sem acesso. E o transporte público sendo pouco a pouco adaptado.

Mas algumas reformas cruciais pra gente seguir adiante não foram feitas desde o tempo do FHC. São 20 anos. Reforma da Previdência (nós estamos com um déficit gigantesco), reforma política, reforma tributária…

Você acha que a Comissão da Verdade está fazendo um bom trabalho?

A Comissão da Verdade está fazendo o que ela pode fazer. Ela também é a cara do Brasil. Ela pode investigar, mas não pode punir. Então é uma comissão para quê? Para você revelar a verdade. Então você revela a verdade mas não pune aquele que…

Você vê a Miriam Leitão. Ela resolveu falar algo que estava engasgado.

Você sabia?

Sabia. Ela tinha nos contado, mas não entrou em detalhes.

Por que uma pessoa decide falar agora? Que mecanismo que acaba sendo disparado?

Talvez como jornalista fosse melhor para ela ser discreta, mas eu realmente não sei qual é o mecanismo.

O que efetivamente a Comissão da Verdade trouxe de novo sobre o desaparecimento de seu pai?

A gente sabia mas não tínhamos provas. Todos sabiam quem torturava no DOI-CODI em 1971, como torturavam.
Os papéis encontrados confirmaram nossa versão, os boatos.

Se, como você diz, a ditadura não foi só uma briga entre grupos armados e um Estado aparelhado, ela foi o que?

Um movimento civil-militar para impedir reformas que feriam os interesses de uma burguesia e do governo americano. Foi um movimento abertamente patrocinado pelos EUA, que mandou aqui um pastor americano para convencer a classe média do perigo comunista, se utilizou do receio que havia depois da Revolução de 59 em Cuba de perder um outro país, esse sim importante pros EUA (que era o Brasil), os negócios americanos aqui (Ford, General Motors), o temor dos movimentos sindicais, o temor da reforma agrária.

Como compararia a ditadura brasileira às ditaduras vizinhas?

Todas as ditaduras latino-americanas foram uma expressão da Guerra Fria. Claro, a da Argentina e do Chile foram imbatíveis. É até uma piada: os argentinos foram imbatíveis até nisso. Mas eu acho que no Brasil as pessoas também menosprezam um pouco o que foi a ditadura. O Jacob Gorender tinha calculado entre 40 e 50 mil presos. É bastante gente. Fora  a quantidade de livros e filmes, peças de teatro que foram censuradas. A sociedade brasileira inteira sofria consequência da ditadura. Todo jornal tinha sensor presente, toda a redação do Pasquim foi presa, editores, jornalistas.

Como é que você viveu (ou vive) o trauma da ditadura?

Tirando o fato de minha família ter sofrido horrores, e sofre até hoje sobre detalhes de tortura que saem eventualmente no jornal, quando eu estou com meu filho bebê no colo… A gente chora, a gente sofre, se deprime. Quando aparece alguém como o  Malhães dizendo que o corpo do meu pai foi jogado no mar, depois que foi no rio, depois que não foi jogado em lugar nenhum (que ele nem participou). Minha família lê aquilo e pensa no que?

Como é que a ditadura foi  vivida por você?

Olha, muito solitariamente. Por exemplo: quando houve o desaparecimento do meu pai, que foi no começo de 1971, já estávamos no AI-5. Então a censura era tremenda. E paralelamente a isso estava acontecendo o ‘milagre brasileiro’. O Brasil tinha acabado de ganhar a Copa, as pessoas estavam contentes, o país se industrializando…

E a minha família sofrendo um abuso do Estado de uma forma bastante violenta, a gente não tinha com quem compartilhar isso. Nossa família sofreu muito sozinha. A gente se mudou de cidade por causa disso, e tivemos vários problemas,  por exemplo: quando eu saí da escola do Rio de Janeiro e tive que me despedir dos meus coleguinhas, expliquei que estava indo embora porque meu pai foi preso. “Mas o que teu pai fez? Ele matou alguém? É assaltante?”, perguntaram. E eu, “não, meu pai é um preso político”.

As pessoas não entendiam o que estava acontecendo. O desaparecimento do meu pai foi um dos primeiros da América Latina. A prática do desaparecimento começou ali. Se ele tivesse desaparecido em 1976 a gente saberia que ele desapareceu, mas em 1971 não se fazia ideia de que isso poderia ocorrer, nem o por que disso, porque ele não era da luta armada.

Quando vocês se convenceram que ele tinha sido assassinado? Na hora?

Não, demorou uns 2 ou 3 anos. Cada um enterrou a sua maneira. A minha mãe, por exemplo, manteve o armário do meu pai intacto durante anos. Ela tinha esperança, entendeu? Mas porque era inédito. Não ocorria aquilo no Brasil. Começou a ocorrer porque era uma tática de guerra, de eliminar o inimigo, uma tática de terror, você assusta os seus oponentes.

Como eram seu pai e sua mãe enquanto casal?

Era um casal comum, feliz, de classe média alta, burguês. Gostavam de viajar, moravam no Leblon. Meu pai tinha uma mesa de pôquer. Sabe o Mad Men? Parece o Mad Men. Minha mãe com 5 filhos, gostava muito de ler (era formada em Letras), e meu pai um cara muito culto e muito inteligente, que tinha muitos amigos. Era amigo do Haroldo de Campos, do Augusto de Campos, do Antonio Callado, Antonio Candido, Millor Fernandes, Paulo Francis frequentava minha casa, FHC, Fernando Gasparian… Era uma turma de amigos muito ampla, e ele não era um cara com muitos preconceitos. Era amigo do Sarney, por exemplo.

Quer dizer, era um cara que não era comunista e era contra a luta armada. São duas coisas que diferem muito da imagem que se faz daqueles que morreram na ditadura. Mas tinha amigos comunistas, e tinha amigos que estavam na luta armada. Era um cara de esquerda. Ele era exatamente o governo Jango. Meu pai queria um Brasil diferente, mas não comunista. Ele era um reformista.

Você chorou na última Flip…

Chorei porque pela primeira vez ouvi um áudio com a voz de meu pai. Tirando esse lamentável choro, essa explosão na Flip que eu fiquei morrendo de vergonha, ninguém na família nunca chorou em público. Só entre quatro paredes. Minha mãe chorava dentro do quarto dela. Por que? Porque a gente tava em guerra, a gente tava em luta. A gente tava combatendo a ditadura e estava querendo saber o que tinha acontecido com meu pai. Por que ele tinha sido cassado em 1964, por que tinha sido torturado e morto, por que minha mãe foi presa, por que a Eliana minha irmã foi presa…

Combatemos a vida toda. Não era uma luta pessoal. A gente nunca personificou a luta da família Rubens Paiva. A gente é uma família de militantes, entendeu? A Vera, minha irmã, foi líder estudantil. A Eliana foi da Libelu, eu fiz militância estudantil em Campinas. Minha mãe foi do Comitê Brasileiro da Anistia, fazia reuniões com dom Paulo Evaristo Arns, foi do movimento das Diretas Já…

Tomando de empréstimo o conceito de banalização do mal de Hannah Arendt, como enxerga a figura do torturador?

Eu não entendo a tortura. Eu não entendo você pegar uma estudante de 18 anos, tirar a roupa e colocar uma jiboia do lado, como contou a Miriam Leitão. E isso é fichinha perto do que aconteceu. Aqui em São Paulo por exemplo, houve uma mulher que foi torturada em frente ao filho – e ele se matou no ano passado. A minha mãe poderia ter sido torturada em frente ao meu pai.

Eu tenho amigos que foram torturados. Alguns realmente enlouqueceram, outros dão risada. O Rodolfo Konder por exemplo, brincava que ficou no pau-de-arara e tinha se acostumado a ver as horas de ponta cabeça. Ele falava isso e dava risada.

Eu nunca fui torturado e não imagino o que deve ser.

Eu acho que a tortura não é um ato de selvageria, é um ato de técnica de guerra, de humilhar o inimigo, quebrar os ossos de uma organização, como eles falavam. De assustar a população. E era nitidamente, no Brasil, uma política de cima para baixo. Porque neguinho lá embaixo não torturava se não tivessem dado a permissão lá em cima. Vinha de Médici, do ministro da Justiça dele, dos comandantes… Era uma prática de afirmação no poder.

O Malhães você já tinha visto? O que o depoimento dele na Comissão da Verdade, sobre seu pai, te inspirou?

Não, nunca vi. Olha, tem muito oportunista que quer dar uma de malandro, fingir que foi o bam bam bam. Eu já vi isso. “Ah, eu trabalhei no DOPS, eu sei de coisas, sou amigo de fulano e de beltrano”. É uma forma de querer dizer que fez parte da história. O Malhães era chefe de milícia, um cara perturbado. Talvez até tenha realmente feito aquilo que ele falou que fez, de sumir com corpos. Mas ele não tem nenhuma relação com meu pai, eu sei porque pelas datas que ele fala não batem. Ele diz que desenterrou meu pai em 1973. Mentira. Meu pai não foi desenterrado em 1973, 1973 ainda era plena ditadura, nem precisavam desenterrar meu pai, entendeu? Meu pai foi desenterrado na véspera da abertura política, em 1979.

Quando nasceu teu filho, mudou a relação com tudo isso?

Mudou porque meu filho tem os olhos do meu pai. É terrível. É uma bandeira, entendeu? Quando tudo isso foi revelado nesse ano, nasceu o meu filho com os olhos do meu pai. Meu pai tinha olhos azul piscina, meu filho tem olhos azul piscina. Ninguém na minha família tem olho azuis. Só o meu filho e meu pai. E é loiro de olhos azuis, como o meu pai. Meu pai tinha ascendência alemã. Meu filho tem 6 meses agora. Então o meu filho mexeu comigo. Não só pelo fato de ter os olhos do meu pai, mas pelo fato de ser neto dele. É um menino. Tem o sobrenome Paiva né?

Algo mais a ser dito sobre a Miriam Leitão?

Isso tudo pegou a gente de surpresa. Inclusive a reação descontrolada, sobre esses caras da extrema direita que têm colunas, blogs, twitter e meteram o pau na história.

Falando nisso, como é a sensação de ter um drama pessoal sendo devassado pelas redes sociais?

Independentemente do fato de ser filho do Rubens Paiva, eu sou eu. Eu sou o Marcelo Paiva. Você sabe que o Feliz Ano Velho era um livro que eu nem citava o meu pai? Eu falei do meu acidente, da minha turma, de rock´n´roll, festinhas… Só citei o meu pai porque eu falei: “Cara, vou ter que citar”.

Eu achava que era minha mãe que deveria, um dia, escrever um livro sobre o meu pai. Quer dizer, eu tenho uma vida profissional independente do fato de ser filho do Rubens Paiva. Sempre tive. E sempre tive consciência de que, como filho dele, eu tenho que representá-lo, mas que também tenho a minha vida.

Aquela juventude de Feliz Ano Velho e a de hoje. Que paralelo a gente consegue fazer?

Ah, não tenho a menor ideia. Acho que agora a juventude é mais consumista, preocupada com a aparência. A grande ambição da minha geração era ou ir pro kibbutz, que era uma experiência socialista comunista em Israel, na época que Israel era de esquerda, colher uva na França ou ir pro projeto Rondon e viajar de graça pelo Brasil. Ou ainda, viajar de navio mercante. E eu estudei nas escolas de elite. Então isso era a ambição. Hoje em dia não, hoje em dia é uma coisa mais grana. Tanto que as matérias que mais faziam sucesso na nossa turma eram Ciências Sociais, Sociologia, Antropologia, Psicologia… era pensar no outro. Agora é Administração, Direito, Relações Internacionais. Bestas né?

Por outro lado, acho a juventude brasileira hoje bem mais aberta às questões das diferenças. Mais tolerante. É claro que tem um ou outro grupo mais radical, mas sinto uma juventude bastante politizada apesar de não ter uma bandeira bem definida.

E o 7 a 1? O que você achou?

(risos) Era um pouco esperado né? Uma coisa é você torcer pro Sócrates, outra coisa é torcer pro Neymar – eu ia falar no David Luiz…

Sobre sua polêmica com o Roger, do Ultraje a Rigor: uma coisa que me tocou é que vocês são ou eram amigos, não? Da mesma geração.

Não vou falar do Roger.

O que dá para ser dito é que existem algumas pessoas que nos surpreendem, que nos eram importantes como intelectuais, como jornalistas, como músicos, como amigos até, e que através das redes sociais você descobre que têm opiniões completamente diferentes das suas. E que envelheceram mal. Que ficaram mais reacionárias, rancorosas.

Então, é interessante como as redes sociais permitiram às pessoas fazer confissões que elas não fariam cara a cara. E, com isso, você percebe a desinformação completa, a descontextualização.

Eu acho que a rede social permitiu que a gente conhecesse esse tipo de direita que estava adormecida ou que existia e a gente não sabia.

Agressivas as frases que ele soltou no twitter, não?

A internet está deixando as pessoas mais mal-educadas. É engraçado. Eu, como escritor, sei o poder da palavra. Eu escrevo uma frase e, quando vejo num palco a pessoa falando, eu vejo a força que ela tem. As pessoas não escreviam antes como escrevem agora. Mas elas não sabem escrever.

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Haaretz - o que vê quem vê de dentro em Israel

Por Morris Kachani
20/08/14 14:54

Aluf

Por Tracy Segal

A blindagem de informações em Israel não se dá por nenhum tipo de censura do governo mas, segundo o editor-chefe do diário Haaretz, Aluf Benn, pelo próprio povo israelense que se mantém dentro de um círculo de interesse de informações. O único veículo a mostrar os dois lados do conflito em Gaza segundo ele é o Haaretz que, por vezes, foi duramente criticado pela população entre reclamações e cancelamentos de assinaturas.

Sem correspondentes em Gaza, jornalistas israelenses estão proibidos pelo governo de atravessar a fronteira, segundo Benn. As informações vêm de fontes como mídias internacionais que contam com correspondentes no território do conflito, ou relações pessoais de jornalistas israelenses com moradores da faixa de Gaza através de ligações telefônicas.

Do ponto de vista midiático, a característica particular deste conflito, segundo Aluf, é a comunicação direta via facebook, twitter e instagram. Opiniões pessoais e discussões trazem para a cena a opinião pública, e principalmente a crescente popularidade do primeiro-ministro de Israel, Netanyahu, no decorrer deste conflito.

“Em períodos de guerra as pessoas são menos tolerantes a críticas à conduta militar e à política do governo. Mas desta vez ocorreu um novo fenômeno, que é o pior. Geralmente na primeira semana do conflito as pessoas estão felizes, apoiando o governo, mas à medida que o conflito piora, os soldados morrem, a popularidade cai e as pessoas se revoltam. Neste caso foi o oposto. A popularidade do governo e da operação militar só foi aumentando”.

Quando questionado sobre a imagem internacional de Israel, Aluf foi simples e claro ao afirmar que as pessoas escolhem a segurança quando estão sob o terror de ataques, e os israelenses têm se sentido inseguros, especialmente após a descoberta dos túneis. Sem esquecer que se trata de uma população onde todos estão diretamente ligados ao Exército, seja na ativa, ou na reserva – a grande maioria do população prestou ou presta serviço militar e quer os seus filhos de volta sãos e salvos.

Considerado um dos jornais mais influentes em Israel, o Haaretz, que em hebraico significa “da terra”, é o mais antigo de Israel tendo sido fundado em 1918. É um jornal liberal à esquerda com circulação bilíngue em hebraico e inglês, tendo assinantes em todo o mundo.

Um de seus articulistas, Gydeon Levy, que assina uma coluna semanal sobre a ocupação na Cisjordânia e Gaza há 25 anos, frequentemente expõe sua posição anti-guerra com severas críticas a um fenômeno que chama de desumanização do povo palestino por Israel.

Durante o conflito Levy foi severamente repreendido pela mídia local em Israel e pela população, com campanhas pelo cancelamento de assinaturas do Haaretz, considerado por muitos como anti-israelense e até pró-palestino.

Em retaliação a seus artigos, o presidente da coligação do partido em poder no Parlamento recentemente o chamou para responder em um tribunal por traição. Seu último texto no Haaretz do dia 17 de agosto diz:  “As sirenes silenciaram, os especialistas se foram e o absurdo retorna. Israel está de volta a sua bolha (…) Os mortos morreram e os matadores mataram em Gaza simplesmente para garantir um pequeno interlúdio de silêncio para Israel”.

Aluf Benn defende seu articulista: “Eu acredito que em tempos de guerra, é quando a democracia é realmente colocada em xeque, é quando você precisa ser crítico ao seu governo e ao comando militar, porque é quando vidas humanas estão em jogo. Você não pode se calar e depois da guerra olhar para trás e só então criticar”.

Ao mesmo tempo, segundo Benn, o Haaretz deu suporte ao governo em suas decisões durante a guerra, para evitar mais violência e limitar os danos aos civis.

*

Como funciona a cobertura em Gaza?

Tem pessoas em Gaza com twitter mas não existem TVs independentes nem rádios.

Não temos repórteres israelenses em Gaza. Eles foram proibidos pelo governo de entrar em Gaza há 6 ou 7 anos. Temos alguns correspondentes que têm contatos em Gaza, que falam pelo telefone com pessoas em Gaza, a comunicação por telefone não foi cortada. Ou as então as informações vêm de contatos internacionais. Tínhamos uma jornalista de Gaza que escreveu colunas para nós, mas não eram exatamente reportando as notícias, eram mais sobre os sentimentos das pessoas do outro lado.

De onde vêm as notícias de Gaza?

De organizações e jornais internacionais que tem correspondentes por lá e pelo telefone. Uma de nossas jornalistas, a Amira Hass,  mora em Ramalah, mas morava em Gaza e tem muitos amigos lá.

Qual a posição do Haaretz?

O Haaretz deu suporte ao governo em suas decisões durante a guerra, para evitar mais violência e limitar os danos aos civis.

Existe uma mídia independente em Israel?

Claro que há  – mas a maioria da mídia independente tende a dar suporte ao governo em tempos de crises na segurança.

Como é a mídia local de Gaza?

Existe a Hamas TV e várias contas do twitter que são oficiais e semi oficiais, mas não sou um especialista sobre a mídia em Gaza.

E a popularidade de Netanyahu?

Uma pesquisa de opinião feita durante o cessar-fogo indicou muito apoio a Netanyahu, ao comandante do exército e ao ministro da defesa, mas não foram feitas perguntas sobre uma próxima eleição, partidos ou como ficaria o Parlamento. Antes desta operação, Netanyahu sofria problemas dentro do próprio partido, de pessoas que não o apoiavam, pessoas da extrema direita que acham sua liderança muito leve contra o terrorismo e contra os palestinos.

Ao mesmo tempo, os cidadãos de esquerda criticam Netanyahu por arrastar o passo no processo de paz, no cara a cara com o presidente da Autoridade Palestina Mahmoud Abbas, mas apoiam Netanyahu na sua condução durante a guerra.

Ele é muito popular entre o público e especialmente quando perguntam quem seria o melhor candidato a resposta é sem dúvidas Netanyahu. Essas mesmas pessoas dizem não estar felizes com os resultados da guerra, mas ainda vêem Netanyhu como o melhor para conduzir Israel por esta crise.

Como você define a posição política do Likud (partido político em poder) e de Netanyahu?

Eles  se seguram na política territorial do status quo enquanto Israel se expande através dos assentamentos na Cisjordânia.

Existe uma guerra midiática em curso. Isso afeta o governo?

A pressão da mídia não, o que afeta são as relações de amizade com outros governantes como dos EUA e da Europa. Existe um temor entre oficiais israelenses sobre se vai haver alguma consequência legal depois da guerra. O cônsul de direitos humanos da ONU já nomeou uma comissão para averiguar se Israel cometeu crimes de guerra ou não. Existe uma certa preocupação de que eventualmente a Autoridade Palestina assine para participar do Tribunal Penal Internacional, o que pode abrir uma porta para acusações contra oficiais israelenses pelo que aconteceu em Gaza. Isso tudo ainda é uma possibilidade, porque ainda não há acusações específicas. E, francamente ainda não acabou.

As imagens de crianças mortas na mídia são chocantes.

O problema não é a mídia, o problema é que as crianças têm realmente morrido. Ninguém inventou. Nós (Haaretz) somos a única mídia que tenta reportar esta guerra dos dois lados em Israel. Colocamos o número de mortos na Palestina na capa. Os outros jornais israelenses escondem o que for que ocorre em Gaza na página 17. Uma pesquisa mostrou quais fontes pró-Israel e pró-palestina são usadas em citações. Os jornais pró-Palestina estavam citando a BBC, os pró-Israel estavam citando em geral jornais israelenses em inglês ou as mídias americanas mais conservadoras. Haaretz é o único jornal citado por ambos. Estamos mostrando uma guerra que tem dois lados. Ao invés de ser o porta-voz de apenas um lado.

Você tem no Haaretz um articulista, Gydeon Levy, que faz críticas ao governo israelense causando diversos episódios de repreensão e cancelamento de assinaturas. Existe algum tipo de censura em Israel?

Ele escreveu artigos críticos sobre a conduta de Israel neste conflito e levantou questões durante a guerra. Sofremos críticas e revolta dos leitores e da população em geral.

Eu acredito que em tempos de guerra, é quando a democracia é realmente colocada em xeque, é quando você precisa ser crítico ao seu governo e ao comando militar, por que é quando vidas humanas estão em jogo, você não pode se calar e depois da guerra olhar para trás e só então criticar. Eu considerei as colocações dele pertinentes. A pessoas o questionaram argumentando que ele estava errado. Mas esta é a maior característica de democracia. Ter discussões abertas até em períodos de guerra.

Não há nenhum tipo de censura do governo?

O governo não tem nenhum prevenção contra críticas. Temos censuras quanto a questões militares, por exemplo não podemos publicar onde um foguete de Hamas foi encontrado em Israel por que você não quer dar informações sobre o alvo para o inimigo. Mas não há esforço do governo em impedir algum debate. Aconteceram críticas do povo, privadas, pessoas cancelando assinaturas, grupos revoltados no facebook.

Críticas espontâneas da população?

Talvez espontâneas, talvez organizadas por grupos de direita que se opõem ao que fazemos. Eles vêem nisso uma oportunidade de ganhar popularidade com o grande público. Não foi a primeira vez. Em Israel temos conflitos recorrentes e nestes períodos as pessoas são menos tolerantes a críticas à conduta militar e a políticas do governo. Como todos os israelenses ou servem o Exército ou estão na reserva, e seus filhos, vizinhos, amigos estão no campo de batalha, eles não querem ouvir críticas.

Como o povo israelense lida com os protestos ao redor do mundo? Eles estão cientes?

Eles sabem o que está acontecendo, mas ao fim do dia não querem estar sob ameaça de túneis cavados embaixo deles. Quando sob ameaças, se tiverem que escolher entre a popularidade internacional e a segurança em suas residências, eles escolhem a segurança. Eles estão cientes das críticas. Mas, muitas vezes, as pessoas aqui em Israel acham que se trata ou de antissemitismo, ou de antigas implicâncias, ou políticas anti-Israel. Em geral, não se preocupam com estas discussões sobre opinião pública ou diplomacia, eles querem é que os militares ganhem e os soldados voltem pra casa sãos e salvos. Eles se preocupam mais com isso do que com o que estão falando em Paris ou São Paulo ou Miami. Estas questões surgem depois da guerra.

O que diferencia este conflito dos anteriores?

Acho que tem dois novos fenômenos nesta guerra comparando às anteriores. Uma é o fenômeno da mídia. Não a internet, por que já existia em 2006 e 2008. Mas facebook, twitter e instagram etc, servem como amplificadores das notícias. Temos acesso não somente ao que os jornalistas estão retratando mas a opiniões pessoais, de amigos discutindo sobre a questão. Isso é inédito para nós, israelenses.

E o outro fenômeno é doméstico, que é o pior. Geralmente na primeira semana do conflito as pessoas estão felizes, apoiando o governo, mas à medida que o conflito piora, os soldados morrem, a popularidade cai e as pessoas se revoltam. Neste caso foi o oposto. O governo e a operação militar aumentou de popularidade (a última pesquisa feita pelo Gallup deu aceitação de 82%), e eu acredito que foi porque desta vez teve uma campanha de ataques aéreos onde relativamente  poucos militares estão envolvidos.

Em seguida a descoberta dos túneis alertou a população para o fato de que não se trata somente de castigar Hamas pelos ataques dos foguetes. Existe uma ameaça estratégica, onde as pessoas sentiram suas casas, suas famílias e amigos em risco, então deram suporte ao governo pela operação para acabar com os túneis. Neste caso as pessoas acharam que era a coisa certa a fazer. Por isso se tornam menos vulneráveis ao que outras pessoas de fora de Israel dizem.

Você vê uma possibilidade de paz?

É muito cedo para dizer. Não sabemos se eles conseguem encontrar um novo ponto de conciliação, a longo prazo, que levaria a um processo de paz entre Israel e a Autoridade Palestina. É possível argumentar a favor dos dois lados.

Alguma saída vai surgir. Mas acho que vai levar tempo. Não sou capaz de  afirmar nada.

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