Por Tracy Segal
Lourenço tem a voz mansa, uma doçura que parece esconder enigmas. Em entrevista por Skype vi pelo quadro do aplicativo um frame que poderia ser um desenho de seus quadrinhos, volta e meia um gato passava pelo quadro. Um mundo fantástico que pairou sobre esta conversa me fez duvidar da realidade por muitos momentos.
Mutarelli dribla entre o real e a ficção num jogo acirrado em seu trabalho. A distorção é a lente pela qual retrata seus universos em geral pontuados por um humor ácido. É reconhecido por sua obra tanto literária, já teve quase todos os seus romances transcritos para o cinema, quanto como desenhista de histórias em quadrinhos. “O cheiro do ralo”, seu primeiro romance, foi adaptado com sucesso tendo Selton Mello como protagonista.
Foi nos anos 90 em um mergulho nas trevas da depressão que nasceu “Transubstanciação”, uma história em quadrinhos onde seus personagens lúgubres e cínicos ganharam o papel pela primeira vez, e que foi um divisor de águas para o artista. Posteriormente ele criou uma história em quadrinhos que se chama “Réquiem” e que seria a versão fiel à realidade desta fase, ou o que seria fiel para o escritor.
Agora está com dois romances a caminho: “O grifo de Abdera” e “Livro IV e/ou O Filho Mais Velho de Deus” .
“Logo, logo vou estar abrindo essa igreja. Tem muito conceito e estou escrevendo uma bíblia. Tem a ver com ancestralidade. É uma igreja do capeta, posso dizer”.
“Eu acredito no capeta. No demônio. Eu acredito no mal. O bem pode existir mas não tem nenhuma relação com a gente”.
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A memória como uma construção, ficção, narrativa, paranóia, é muito presente nos seus livros. Isso seria uma obsessão?
A memória é uma coisa que me ocupou e vem me ocupando ultimamente. Se o que eu lembro não é o que vivi exatamente, o que vivo também talvez não seja o que eu acredito. Isso vem se desdobrando. Eu terminei um livro, que sai esse ano, e um outro que estou trabalhando, esses livros mexem muito com a realidade. É quase uma memória presente. A memória deste momento. Por mais que eu tente absorver isso agora, em muito pouco tempo ela já vai estar distorcida. E isso é minha realidade também. Essa é uma questão que tem sido uma das minhas obsessões ultimamente.
Eu também tenho buscado o que eu chamo de uma memória ancestral, uma memória que não é minha. Estou fazendo uma experimentação em quadrinhos que é justamente um exercício através de imagens, vou apropriando e desenhando rapidamente. Depois, através da escuta de uma música específica eu tento extrair um texto que não seja meu nem do que eu estava ouvindo. Algo que viesse de um lugar ancestral.
Xamânico?
Totalmente. A música é minha religião. É fundamental a melodia da minha escrita. O que importa é a cadência. Infelizmente não consigo escrever ouvindo música, mas antes eu escuto para entrar num registro musical. Pelo exercício, às vezes eu estou só na música e não trago nada dela. Mas em alguns momentos, eu consegui frases que não considero minhas e que gosto muito. É um garimpo. Não tem nada a ver com espírito ou espiritualidade. Tem mais a ver com química ou qualquer coisa assim. Algo que está em mim mas não é meu. Às vezes eu tenho brincado com isso nesse meu livro que é mais divertido, que tem mais humor.
Parece contraditório falar disso com humor.
Para falar de algumas coisas você precisa ter humor se não ninguém vai entrar nesses assuntos. Você fala uma coisa séria, mas talvez esteja brincando. Se eu falar que eu realmente acredito nisso eles vão deixar de te ouvir. Para propor algo muito absurdo é preciso humor.
Eu preciso da brincadeira pra tentar construir uma coisa que seja risível e que se transforme durante a narrativa. Por isso eu vou levar muito tempo pra escrever esse outro livro.
Como você descreve a diferença entre a realidade recomposta no “Réquiem” e a realidade enigmática do “Transubstanciação”? Duas obras em quadrinhos que retratam a mesma realidade de formas completamente diferentes?
Eu tenho muito carinho por “Transubstanciação”. Um aluno das minhas oficinas me deu e eu reli, me impressionou muito essa coisa visceral. No “Réquiem” tentei ser o mais fiel possível ao fato. Eu acho que um escritor nunca consegue ver a realidade sem dar uma romanceada, trocar uma palavra. Tornar as coisas mais mágicas, às vezes torna até a vida melhor.
Mas “Transubstanciação” foi feito numa época em que eu estava numa depressão profunda, eu lembro exatamente quando eu tive a ideia. No “Réquiem” eu narro a depressão em que passei 3 meses deitado no chão da sala. Na época na TV Cultura estava passando uma série de programas com o Jaques Cousteau. Os mergulhadores entraram nas cavernas subterrâneas, que era um risco muito grande porque eles tinham que levar uma quantidade de oxigênio muito restrita e se eles se perdessem ali não tinha volta. Nesse momento eu pensei: eu tenho que fazer isso comigo. Eu tenho que mergulhar e entender o que é essa loucura que eu estou vivendo. E foi aí que eu tive a ideia do “Transubstanciação”. Não tinha um roteiro, só uma espinha dorsal que eu tinha em mente. Quando eu tinha condição, que conseguia sair do chão, eu desenhava um pouquinho. Fiquei quase um ano fazendo aquela história. Eu estava me tratando também, os remédios foram fazendo efeito e eu fui reconquistando os outros espaços do mundo: da casa, do quarteirão e por aí afora.
Então eu acho que ele pega um estado que eu estava vivendo, que eu espero nunca mais viver, mas se acontecer eu sei como ele é. Foi uma experiência muito profunda, e eu tenho feito experimentações, eu tenho buscado coisas com… eu não quero deixar de ser punk, perder essa energia que eu tinha quando eu era moleque. Eu tenho feito coisas assim.
Foi um marco na sua vida?
Eu tenho 2 marcos. “Transubstanciação” e “O cheiro do ralo”. Antes do “Transubstanciação” eu vinha tentando me adequar ao mercado de quadrinho, de humor. Depois eu assumi meu destino. Sem dúvida foi meu divisor de águas. E pessoalmente também. Eu acho que saí disso muito melhor do que quando entrei. E as coisas começaram a mudar naquela época. Recebi um prêmio muito importante que deu um dinheiro e consegui construir minha edícula e casar com a minha namorada. Foi uma mudança na minha vida.
Eu percebo em você, nas suas obras e nos seus personagens, uma agressividade suave ou uma crueldade silenciosa. Capaz de dizer as coisas mais cruéis de forma doce. É pertinente?
Sim. Eu tento acalmar a minha agressividade social mas não posso acalmar este monstro que é o meu trabalho. Eu tenho que compactuar com ele.
Eu fui muito agressivo na minha adolescência. Toda a agressividade que eu tinha recebido ela começou a vazar. Inclusive eu acho que aquela depressão e o pânico foi uma forma de controlar, de voltar isso contra mim, para poder parar essa agressividade. E ela tá sob controle, só uso quando preciso.
Você foi punk?
Eu nunca gostei de nenhuma turma, nunca fui nada. Tinha um pouquinho de algumas coisas. Eu estou fundando uma igreja, mas é uma igreja pra mim, só minha, não aceito adeptos. Na adolescência eu tinha uma gang que era só eu. Logo, logo vou estar abrindo essa igreja. Tem muito conceito e estou escrevendo uma bíblia. Tem a ver com ancestralidade. É uma igreja do capeta, posso dizer.
Quem é o capeta?
Tem a ver com o livro que eu estou escrevendo.
Você tem uma criação cristã?
Infelizmente sim. Eu estudei em colégio de padre e de freira. Meu avô paterno era ateu, e eu era ateu. Era muito difícil conviver neste meio. Essas coisas marcam.
Você sofre de culpa cristã?
Eu sofro de culpa, não sei se é cristã. Neste livro que estou escrevendo, um pouco da bíblia vai estar lá. Num livro que vai chamar “Livro 4 ou o filho mais velho de Deus”.
Você acredita em deus?
Eu acredito no capeta. No demônio. Eu acredito no mal. O bem pode existir mas não tem nenhuma relação com a gente. A gente se relaciona com o que é mal. O mal precisa da gente. O bem não precisa, o bem é indiferente, é geométrico, a gente tem um pouco dele no DNA.
Você acredita nesta dicotomia bem e mal?
No fim é a mesma coisa em pontos diferentes do espaço. Só parece diferente dependendo do ponto em que se está. Eu acredito no mal como essência. Existe uma essência do mal. Que se alimenta da gente e a gente dele. Existe o mal primordial.
O que seria definição do mal?
O mal como algo imaterial que precisa da nossa matéria pra se saciar em determinados pontos. Eu acredito que o mal essencial não é comum , não é tão facilmente acessado.
Tem a ver com o poder da destruição?
Sim. Tem a ver com uma forma de se alimentar pela destruição. Pelas formas mais sombrias.
E isso tem humor?
Muito humor. Palhaçada gigantesca.
Você se diverte escrevendo?
Muito. Esse livro que tá parado me divirto muito, escrevo rindo. Minha mulher leu uma parte e disse que só eu vou rir, mas isso é que me importa.
Por que esta virada dos quadrinhos para a literatura?
Eu estava lendo o “Capão Pecado” do Ferréz e percebi como ler me causa uma ilusão muito maior. Quando leio chego muito mais próximo dessa ilusão do que seria a realidade do que quando eu lia quadrinhos. Me deu vontade de evocar a imagem pela palavra e aí eu fiz “O cheiro do ralo” que foi minha primeira experiência.
Como você diz – a palavra evoca a imagem. O fato de seus livros virarem filme não entrega uma imagem para o seu texto, seus personagens?
Eu nunca mais reli “O cheiro do Ralo”, mas acredito que se eu relesse eu veria o Selton Mello o tempo todo. O que não é de todo mal, mas acho importante ter a imagem primordial do personagem. Porque a imagem é muito forte, muito invasiva. Ainda mais no cinema com todos os fatores, te invade muito, é muito difícil você ter um espaço criativo, imagético dentro de uma obra como cinema que tem o texto, imagem, música, montagem. É muito mais contemplativo.
O livro é de quem lê. Pra mim é muito importante isso. Eu tenho finais que são às vezes abertos. Eu gosto desta apropriação do leitor.
Eu percebo em seus personagens uma resignação melancólica, um niilismo. O que você percebe em comum nos seus personagens?
Acho que em todas as minhas histórias, meus personagens estão perto de uma mudança que não vai ser boa, e irreversível. Meus livros começam neste ponto e acompanho eles durante um tempo. Geralmente não é nada otimista, não tem muita saída. Mas por outro lado me faz muito bem, eu saio melhor de cada livro. Eu tenho exorcizado muita coisa através do meu trabalho.
Eu gosto que tenha um certo humor, mesmo que seja negro, ou fora de registro. E meu último livro tem muito pouco humor. Esse que eu estou trabalhando agora tem humor e o próximo tem muito humor. Estou temperando.
Você tem uma coragem de confrontar seu demônios?
Algo que eu exercito dede muito pequeno. É da minha essência. Eu tenho uma atração por esse mundo mais obscuro, investigar e ir o mais fundo que eu consigo. Meu esporte radical, o que me estimula.
Isso seria o nascedouro das obras? Essas dores, traumas?
Eu bebo muito na minha infância. Eu tinha uma olhar muito deturpado do mundo quando eu era pequeno, o mundo era muito ameaçador, eu via tudo muito distorcido e eu volto muito a esse lugar. Geralmente esse é um ponto de partida. Porque cada livro também é uma forma de pensar mais profundamente sobre um assunto, mesmo que não me traga alguma resposta, eu não consigo pensar mais profundamente do que quando eu estou escrevendo o um livro.
A literatura entrou na sua vida quando?
Quase no fim da minha adolescência. Acho um crime obrigar os jovens a lerem certos livros que eles obrigam até hoje, acho isso um crime contra a literatura e contra as pessoas.
Eu lembro quando eu encontrei Kafka. Eu li uma edição resumida do Crime e Castigo, acho que era do Cony, muito pequenininha e eu gostei tanto que eu fui atrás do livro de verdade. E foi uma experiência incrível que lembro bem. Eu lembro do Kafka, tinha muito a ver com essa atmosfera que eu estava familiarizado. E Machado de Assis… Eu fui encontrando os meus amigos. Os autores que me tocavam.
O Bukowski é um cara que eu encontrei tardiamente. Quando novo eu lia e não gostava e de uns tempos pra cá eu tenho lido e tenho achado muito bom. Tem um cara que falavam que eu tinha que conhecer e não conhecia que é o Kurt Voneggut por quem eu sou extremamente apaixonado agora. Percebo que tinha influência dele sem nunca tê-lo lido. Hoje leio muito, tenho até que tomar cuidado. Eu tento sempre que minhas influências não contaminem o meu universo a não ser que sejam homenagens diretas.
Eu adoro pegar a obra completa de algum autor morto e seguir cronologicamente. O William Burroughs foi muito importante pra mim. Felizmente já me libertei dele. Fiquei completamente obcecado, eu tinha foto dele na capa do meu celular. O cara virou alguém muito importante pra mim.
Meu filho dois anos atrás, não lia nada e passaram pra ele ler “Os Sertões” e eu proibi. Falei pra ele procurar um resumo na internet. Ele tem 18 anos e ele terminou o primeiro livro dele e agora lê muito. Ele lê porque ele encontrou os livros. Não pode impor. É um crime. Isso afasta muito a gente.
Tem irmãos?
Tenho, uma irmã mais velha e um irmão mais novo. Mas nunca fomos próximos.
Eu tinha muita dificuldade de convívio e de relacionamento e tinha um olhar distorcido das coisas. Via tudo de uma forma muito mais sombria do que era. Embora não tenha sido um lugar muito seguro.
O meu pai era muito agressivo e eu era a válvula de escape. Eu apanhava quase todos os dias sem ter motivo. Ele tinha um discurso que ele dizia – eu não vou bater na sua irmã por que ela é mulher e não vou bater no seu irmão por que ele é muito pequeno e eu ia machucar ele, estou muito nervoso e preciso bater em alguém. Batia em mim. E eu vivi isso desde muito pequeno. Minha casa era um lugar muito hostil e muito ameaçador. Eu vivi isso até minha adolescência. Só quando acabou essa violência é que minha mãe teve alguma reação. Ela também era uma pessoa com muita dificuldade em demonstrar afeto, teve uma infância difícil. A minha salvação era a minha literatura na época, que era brincar com meus bonecos de forte apache, um lugar seguro através da minha imaginação, eu ia para um outro lugar. E a casa da minha vó materna que era um lugar que eu estava sempre protegido.
Você tem uma linguagem específica. Você tem uma pesquisa?
Cada livro é uma experiência, eu quero experimentar. Como já fazia nos quadrinhos, mudar o desenho, a técnica. Em “O Natimorto” por exemplo, eu vinha lendo muito texto de teatro, li Ionesco (dramaturgo) e li como um romance, como literatura. Me veio esta vontade e me veio essa personagem que se chamava Voz, que só ele ouvia, ou talvez não fosse tão boa quanto ele ouvia. Uma coisa que é bem delicada: o que nós somos? Quando se conhece alguém que te pergunta o que você faz. A profissão que é muito desconfortável e que te determina muito. O que eles eram neste sentido sociológico, profissional.
Você tem a preocupação com a musicalidade, a construção sonora em sua linguagem?
No dia seguinte em que finalizei “O cheiro do ralo” eu comecei “O natimorto”, mas eu parei porque achei que eles estavam muito parecidos. E voltei um tempão depois. Esses dois livros tem uma semelhança, foram escritos no mesmo ritmo. Eu percebi que esse era meu ritmo natural, o mais fácil pra eu escrever, pelo menos naquela época. E como escrever pra mim precisa ser uma experimentação, eu comecei a buscar outros ritmos. Então o último que é o “Nada me faltará” foi totalmente inspirado na música minimalista, na definição do Philip Glass, música com estruturas repetidas. Eu escrevi com o mínimo possível. Cada um tem seu ritmo ou eu procuro buscar ritmos diferentes.
E o mercado literário no Brasil? Como você sobrevive?
É ridículo. O autor ganha 10% do valor de capa de um livro enquanto a livraria leva 50%. Eu tenho vários amigos escritores e nenhum deles vive de seus livros. Eu vivo de oficinas de histórias em quadrinhos, o que me garante nos meses em que dou oficinas, e palestras e outras coisas que acabam bancando a minha literatura.
Você vê TV?
Infelizmente eu vejo TV. Fiquei muitos anos sem ver, mas de uns tempos pra cá eu tenho visto.
Você tem interesse em política?
Eu voto nulo. Acho que eu votei só no Lula contra o Collor. Eu fiquei tentado a votar no Tiririca e no Pereio, mas não votei. Eu não acredito em política, eu não acredito em ninguém. Acho que ninguém chega lá e consegue ser o que acha que é, são todos fantoches de alguma coisa muito mais poderosa. Não simpatizo com nenhum partido, nenhum político. Também não sou anarquista.
É um niilismo absoluto. Mas, você lê jornal?
Não leio jornal há alguns anos. Eu gosto de alguns assuntos que minha mulher separa pra mim. Mas eu assisto o “Jornal Nacional”, por que eu me divirto e me irrito. Fiquei viciado nesta porcaria. Não acredito que eu assista, mas eu assisto diariamente, gosto de ouvir a previsão do tempo.
A cidade de São Paulo é uma inspiração?
O mais importante de São Paulo é o bairro onde eu vivo. O bairro que me remete ao lado bom da minha infância, onde morava minha avó. Era meu porto seguro, um lugar muito importante e que de alguma forma está mais presente no meu trabalho. Este lugar, Vila Mariana , mais do que São Paulo.