Folha de S.Paulo

Um jornal a serviço do Brasil

  • Assine a Folha
  • Atendimento
  • Versão Impressa
Seções
  • Opinião
  • Política
  • Mundo
  • Economia
  • Cotidiano
  • Esporte
  • Cultura
  • F5
  • Classificados
Últimas notícias
Busca
Publicidade

Blog do Morris

Conversas com pessoas notáveis

Perfil Morris Kachani é jornalista e consultor

Perfil completo

Che Guevara, segundo Jean Wyllys: "o macho alfa da revolução cubana"

Por Morris Kachani
10/05/14 02:15

FELICIANO/WYLLYSMuito há para ser feito em termos de conquista dos direitos LGBT no país. O casamento igualitário é reconhecido judicialmente, mas não pela legislação. A criminalização da homofobia não consta do Código Penal. Travestis e transexuais não conseguem realizar a mudança de nomes e gênero no registro civil.

Por essas é que em matéria de direitos humanos, o Brasil mereceria nota 5. Não que o brasileiro seja conservador. A sociedade se encontra em plena transformação, até nas novelas da Globo a representação homossexual evoluiu. É a elite política que é conservadora. E os partidos de esquerda, de certa forma, também.

Em suma, apesar dos avanços, ainda vivemos em uma sociedade heteronormativa.

Este diagnóstico faz parte de “Tempo Bom, Tempo Ruim – identidades, políticas e afetos” (editora Paralela), em que o jornalista, professor universitário, ex-BBB e hoje deputado federal Jean Wyllys, 40, do PSOL, procura compartilhar a experiência adquirida nos anos de militância pelos direitos humanos. O livro é didático, na medida em que introduz o leitor no conhecimento de conceitos básicos mas não tão disseminados como a distinção entre sexo, identidade de gênero, orientação sexual.

É também obviamente, um livro sobre a visão de mundo de Wyllys, que fica entre a crônica e o ensaio, com laivos de auto-biografia. E por que o título? “Estamos vivendo tempos bons e tempos ruins. Um momento de ambivalências, de avanço e retrocesso. Não está claro para onde o Brasil está indo”, afirma o autor.

“Ao mesmo tempo em que nos posicionamos como a quinta maior economia do mundo, temos um baixíssimo IDH, vemos a sombra desumana dos linchadores se estender, os fundamentalistas religiosos se organizando financeira e politicamente”.

Wyllys se define como sendo de uma ‘esquerda renovada’. Mas com ressalvas. É que a esquerda sempre teve problema de lidar com a liberdade individual, de acordo com ele. “A ponto de todos os homossexuais terem vivido no armário, nos anos de chumbo. Você não podia dizer que era homossexual em um grupo guerrilheiro, se não era expulso ou corria o risco de ser rebaixado, considerado fragilizado”.

“Che Guevara é o macho alfa da revolução socialista. É inegável seu papel na condução da revolução, mas Guevara foi muito ruim para os homossexuais, que foram para o paredão em Cuba. Ele está associado a um espaço da sociabilidade heterossexual masculina”.

*

Como se define politicamente?

Eu diria que sou de uma esquerda renovada. Tenho um problema com a esquerda, que diz respeito à liberdade individual – como os direitos LGBT, ou da mulher sobre seu corpo. A esquerda sempre teve problema de lidar com isso.

Como assim?

Historicamente, a luta de esquerda na América Latina associou homossexualidade a uma reminiscência burguesa. Manuel Puig escreveu sobre isso, em “O Beijo da Mulher Aranha”. A revolução cubana mandou homossexuais para o paredão. No Brasil, você não podia dizer que era homossexual num grupo guerrilheiro, se não era expulso ou corria risco de ser rebaixado, considerado fragilizado.

Como enxerga Che Guevara?

Virou um ícone, como Mickey Mouse. Che Guevara é o macho alfa da revolução socialista. É inegável seu papel na condução da revolução, mas Guevara foi muito ruim para os homossexuais, que foram para o paredão em Cuba. Ele está associado a um espaço da sociabilidade heterossexual masculina.

E hoje em dia, como a esquerda lida?

Tenho muito pontos em comum com meu partido, o PSOL, mas algumas divergências. Temas ligados à sexualidade ou a criminalização da homofobia não foram tão bem assimilados no partido. Há um debate que não está resolvido. Acerca da regulamentação da prostituição,  por exemplo, muita gente no partido defende uma visão ortodoxa socialista de que a prostituição é subproduto do capitalismo, envolvendo a mercantilização do corpo, e que portanto seria preciso lutar por sua erradicação, e não regulamentação. É o pensamento mais tosco que já vi na minha vida. O mesmo moralismo de um partido conservador.

Você escreve que ser de esquerda é defender minorias. A direita não defende minorias?

Muito pouco. Em termos de justiça social e erradicação da pobreza, redução da desigualdade, a direita defende muito pouco as minorias. E quando o faz é sob uma perspectiva de mercado, como se a liberdade de mercado pudesse solucionar questões como o racismo ou a homofobia. Nesse sentido, sou mais da esquerda.

Existem militantes homossexuais de direita?

Existem. Mas não levam em conta as bichas pobres, por exemplo. São pouco preocupados com a questão de classes. A homofobia social que um branco de classe média enfrenta é diferente do negro pobre, que está muito mais vulnerável. Há muitas favelas no Rio de Janeiro em que os gays são deliberadamente expulsos de casa, em um acordo velado entre os traficantes e os pentecostais.

Por que “Tempo bom, tempo ruim”?

A gente está vivendo tempos bons e tempos ruins. Um momento ambivalente, de avanço e retrocesso. Ao mesmo tempo que nos posicionamos como a quinta maior economia do mundo, com mais protagonismo, temos um baixíssimo índice no IDH, assistimos a subsombra desumana dos linchadores se estender, os fundamentalistas religiosos se organizando financeira e politicamente. Não está claro para onde o Brasil está indo, tempos são bons e ruins simultaneamente.

Que nota você dá ao Brasil, em termos de direitos humanos?

Cinco. Tem que ver qual rumo que a gente quer dar. Precisamos valorizar não só nossos recursos naturais mas também os humanos.

Somos um país conservador?

O país não é mas a elite política, que é majoritariamente conservadora, pensa que sim. Existe um lado da sociedade que é profundamente transformador, plural. Na periferia de São Paulo por exemplo, são comuns as famílias formadas por mães solteiras, com filhos de diferentes pais. Nossa sociedade passa por uma profunda transformação mas o discurso político ainda é conservador.

E os evangélicos nesse contexto?

Estão crescendo, fazem parte. Mas não quero localizá-los no ‘tempo ruim’. Não são necessariamente conservadores. Há um aspecto progressista de certas igrejas evangélicas mais modernas. De outro lado, cresce também o fundamentalismo religioso das pentecostais.

E as novelas da Globo, não são conservadoras?

Quando falo de elite política, me refiro a toda estrutura que a sustenta. As novelas da Globo são conservadoras, mas são mais liberais do que muitos colegas do Congresso Nacional. A representação da homossexualidade nelas tem avançado bastante, estão mais plurais. Isso é resultado de uma luta envolvendo audiência, movimentos organizados, redes sociais.

Qual o status dos direitos LGBT no Brasil?

Do PSOL até os partidos de centro esquerda como o PSDB, temos representantes. As demandas são múltiplas, mas poderiam ser resumidas em um tripé de conquistas.

O casamento igualitário, e os direitos a ele associados, como família, adoção ou herança. Isso precisa passar pelo Legislativo, hoje só tramita pelo Judiciário.

A letra “T” do LGBT – travestis e transexuais – também faz parte de nossa luta. A mudança do nome em registro civil, de gênero, a garantia de hormonioterapia, a inserção no mercado de trabalho.

E por fim, a criminalização da homofobia. Houve 326 homicídios relacionados no ano passado, no país. É preciso que a legislação reconheça esse motivo, embora eu pessoalmente não ache que a homofobia deva implicar aumento de pena, como muita gente do movimento defende.

Em que pé estão estes projetos?

O primeiro foi derrubado pela bancada evangélica, o segundo segue em tramitação. A mobilização do Congresso Nacional é zero, o que temos em termos de avanço são certas políticas estaduais e municipais que punem a discriminação.

Você escreveu que futebol é homofobia. É?

Ai meu Deus do céu. Em que pese ao longo desses anos conquistas como a abertura para o futebol feminino ou a emergência de uma ou outra torcida gay, o futebol é uma sociabilidade masculina que se apoia muito na derrisão da homossexualidade e da mulher. É um meio social do homem heterossexual, nasceu e foi criado assim. Tanto que na hora dos insultos o adversário sempre é colocado numa posição feminina ou homossexual.

Agora, de um ponto de vista cultural mais amplo, não estou dizendo que todo torcedor é homofóbico. É claro que não é.

Existe muita hipocrisia?

Querido, apesar de todos os avanços, ainda vivemos em uma sociedade heteronormativa. Você já viu alguma campanha publicitária com as jogadoras Marta ou Formiga? O atleta pra sair do armário tem um custo muito grande. Compromete a carreira.

Preconceito gera preconceito? Pode existir preconceito contra heterossexuais?

Não acho, este é um discurso falacioso e cheio de preconceito. Ninguém associa o hetero à marginalidade, ao anormal.

Você vai se candidatar novamente?

A princípio me candidato à reeleição, mas venho consciente de que posso ou não ser eleito. (nota da reportagem: em 2010 Wyllys foi eleito deputado federal com a menor quantidade de votos pelo Rio de Janeiro – 13.016 (0,2%) dos votos válidos. Ele conseguiu a vaga por conta do desempenho do deputado federal Chico Alencar, do seu partido, que conquistou 240.671 (3%) dos votos)

Uma coisa é certa, reeleito ou não, não sairei de cena. Sou jornalista e professor universitário e estou deputado por ocupação, isso é muito claro pra mim. Se vencer é para concluir um trabalho que meu mandato não conseguiu concluir.

Mais opções
  • Google+
  • Facebook
  • Copiar url
  • Imprimir
  • RSS
  • Maior | Menor

O boom das ocupações

Por Morris Kachani
08/05/14 06:10

MTSTDe agosto para cá, São Paulo está vivendo um boom de ocupações de sem-teto como há mais de três décadas não se via. A mais recente delas ocorreu no último sábado, no Parque do Carmo, a apenas 3 km da arena do Itaquerão. Duas mil famílias ocupam uma área de 150 m2 e pedem que o terreno, que pertence à Viver Incorporadora e Construtora, seja incluído no Plano Diretor como área de interesse social.

A ocupação é comandada pelo MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto), que coordena cerca de 12 operações similares na cidade. Guilherme Boulos, 31, graduado em filosofia na USP, tendo depois feito um curso de especialização em psicanálise lacaniana, é o coordenador do movimento. Guilherme é filho de Marcos Boulos, professor da USP, um dos principais especialistas em doenças infecciosas e parasitárias do país, integrante do corpo técnico da secretaria de Saúde do Estado. Casado com uma militante sem-teto, Guilherme hoje mora em Campo Limpo. As duas filhas, de dois e quatro anos, vão à creche do bairro.

Nesta entrevista, Boulos compartilha sua visão estratégica sobre a questão da moradia e o aumento do número de ocupações, que somam mais de 100 de agosto para cá, de acordo com ele. A especulação imobiliária, a Copa, o sistema político e um olhar crítico sobre os programas do governo federal como o Minha Casa, Minha Vida, estão sob sua mira.

*

Nunca foi tão intenso o ritmo de ocupações na cidade como nos últimos meses. O que está acontecendo?

Primeiro é preciso retornar um pouco na história. A partir de 2003, com o Lula, você tem um crescimento econômico. Mas essa história de achar que o crescimento econômico é bom pura e simplesmente é que é o problema. O crescimento econômico tem efeitos colaterais pesados.

Um deles é a especulação imobiliária urbana. E essa especulação foi se tornando um barril de pólvora, as pessoas não conseguem mais pagar aluguel, e assim vão sendo mandadas para mais longe. O cara que morava em Itaquera e que agora foi pra Ferraz de Vasconcelos, leva uma hora a mais pra ir e voltar por dia. O posto de sáude que era ruim ficou pior, a creche não tem mais, e o cara vai ficando nervoso.

Aí vem junho de 2013 e mobilizações pelo país todo. Qual foi o recado deixado? Na nossa avaliação, foi que quando o povo se mobiliza e vai pras ruas, tem resultado. Afinal, a passagem abaixou.

A partir de julho e agosto começam a pipocar ocupações nas cidades brasileiras de forma espontânea. Não foram os movimentos que previram isso. Os movimentos foram levados, inclusive.

O discurso da direita mais cretina diz “isso é culpa do Haddad”, e os mais paranóicos dizem “isso são os movimentos petistas se rebelando contra o Haddad”. Não tem nada a ver com o Haddad. A gente pegou o momento. Acontece que teve uma convulsão social e abriram-se as comportas das ocupações. Só na cidade de São Paulo são mais de 100 ocupações de julho de 2013 para cá.

Na capital, em torno de 12 estão sob nossa coordenação. Tem outros movimentos que fazem, principalmente no centro de São Paulo, mas o MTST é o maior. Só nas ocupações do MTST são cerca de 15 mil famílias.

Qual seu nível de interlocução com a gestão Haddad?

Com relação a Serra e Kassab, consideravelmente melhor. Por ser um governo que dialoga com os movimentos e mais comprometido com políticas progressistas, como as faixas exclusivas de ônibus ou a cota de IPTU progressiva, que foi enterrada pelo Judiciário.

O que há para ser dito sobre a Copa do Mundo?

No âmbito da especulação, é importante reforçar que a Copa agravou esse processo. Tem um relatório da urbanista Raquel Rolnik que faz um estudo detalhado da especulação imobiliária no mundo inteiro: quanto valorizou na África do Sul, quanto valorizou em Seul, em Barcelona. Não adianta: megaevento traz especulação imobiliária. Então, Copa e Olimpíadas estão gerando esse processo de expulsão, de aumento da segregação urbana, da criação de muros na cidade.

O que são as UPPs no Rio de Janeiro?A UPP gerou especulação imobiliária brutal, a UPP não acaba com o tráfico, não gera segurança para a sociedade – Amarildo que o diga. As UPPs são parte de um processo de controle militar do território em que a segregação precisa ser contida.

A Copa e as Olimpíadas são a expressão disso. A gente até usa o bordão: a Dilma fala em Copa das Copas, mas é a Copa das Tropas, porque é a Copa com maior efetivo militar da história.

Houve uma intenção de se fazer uma ocupação a poucos km do estádio da Copa?

Não é uma questão de intenção. A Copa gerou uma especulação imobiliária grande, que por sua vez gerou uma demanda social. Em Itaquera a valorização nos últimos 5 anos foi de 175%. Mais do que a média da cidade. O Campo Limpo também teve uma valorização grande, algo em torno de 200%. Foram regiões que começaram a ser colonizadas pelo mercado imobiliário.

Aí, o ingênuo pode pensar: “É bom para o bairro chegar infra-estrutura”. É o caramba,  porque quando chega a infra-estrutura ali o trabalhador mais pobre é expulso. Ele continua fugindo da infra-estrutura porque não tem condição de pagar aluguel.

Com isso as pessoas mais pobres não conseguem mais morar no Campo Limpo, foram expulsas para fora da cidade – Taboão, Embu, Itapecirica, etc.

Essa é a lógica de formação da cidade. Jogar o pobre cada vez para mais longe, para periferias mais distantes. Um processo de higienização, de limpeza social – Higienópolis é um exemplo que carrega isso no nome.

Os nomes que vocês dão para as ocupações são emblemáticos. Copa do Povo, Nova Palestina, Faixa de Gaza.

Esses nomes foram definidos em assembléia. O movimento leva sempre 3 propostas para a assembléia e faz votação de nomes. Já rodaram vários: Carlos Lamarca, Anita Garibaldi, Rosa Luxemburgo, Che Guevara, naturalmente. João Cândido, Chico Mendes, Novo Pinheirinho.

Você é filho da classe média paulistana. Como foi para você, passar a morar em Campo Limpo?

As pessoas precisam ser coerentes, viver aquilo que elas acreditam. Se não, não é uma verdade. O que eu procuro fazer é ser coerente com o que eu acredito. Eu vivo com o que é suficiente para eu viver bem. Tenho minha família, duas filhas, esposa, trabalho.

Qual o perfil das famílias que participam das ocupações?

O público que participa de ocupação não é, essencialmente, gente que estava morando nas ruas. Essa é uma visão mistificada. O público consiste em  gente que estava num barraco, numa encosta, numa área de risco. Gente que mora de favor, no fundo da casa de um parente. O cara conseguiu na década de 1970 a sua casa num loteamento clandestino, ou numa ocupação, no período da explosão das periferias em São Paulo. Aí o filho dele casou, mas não tem dinheiro pra comprar casa e ergueu um comodozinho no fundo. Aí o filho dele tem filho, e o negócio vai ficando crítico. Estamos falando de famílias inteiras morando em um só cômodo, por exemplo.

Houve uma elevação do poder aquisitivo dessa camada da população.

De fato houve, com o Bolsa Família e aumentos progressivos do salário mínimo. Agora, essa elevação de renda está essencialmente baseada no endividamento, na medida em que não veio junto com mecanismos de controle do mercado.

Ela foi só uma ideia de ascensão pelo consumo. O que o Bolsa Família deu com uma mão o aluguel tomou com outra. Então, o rentismo financeiro impediu que isso significasse distribuição de renda.

Faltou ao governo petista uma política de regulação e contenção de mercado. O mercado imobiliário em particular, que incide sobre a vida de milhões de pessoas, não teve regulamentação. Você não tem uma lei do inquilinato que controla o reajuste de aluguel, e isso é o básico. Essa lei existiu no Brasil até a ditadura militar.

Então não estou falando em revolução socialista, embora em última instância a defenda. Não é isso que nós estamos cobrando do governo. Estamos cobrando o mínimo: regulação básica do mercado pelo Estado. Você tem medidas do Estatuto das Cidades que não são aplicadas porque o capital imobiliário controla a política.

Qual é a sua visão crítica sobre o Minha Casa Minha Vida?

Nós temos que ser justos nesse sentido. O MCMV é o maior programa habitacional feito na história do país. O diferencial positivo do MCMV é que ele tem uma grossa fatia de subsídio. Para resolver o déficit habitacional tem que ter um subsídio importante. Isso o MCMV trouxe.

No entanto o MCMV não foi feito para resolver o déficit habitacional. O MCMV foi feito para resolver o problema das construtoras, que estavam com risco de falência depois da crise do subprime nos EUA em 2008. Não é à toa que a crise estoura em 2008 e o MCMV é lançado em 2009.

E tem um problema. Só há MCMV na puta que o pariu, lá no fundão. É que eles remuneram o mesmo valor por terreno. Os valores pagos pela MCMV às construtoras são fixos. Você recebe o mesmo, se construir no Tatuapé ou em Ferraz de Vasconcelos… Então você faz um caixote lá no fundão e joga as pessoas para morarem lá.

Que acha das construtoras?

As construtoras financiaram 55% das campanhas dos partidos em 2010, são elas quem hoje definem a política urbana das cidades.

As grandes empreiteiras, que a gente pode chamar de 4 irmãs – Camargo Corrêa, Odebrecht, OAS e Andrade Gutierrez –, são o maior câncer nacional. Elas são a válvula que alimenta o esquema de financiamento de campanha eleitoral e de captura do Estado pelo setor privado. A vanguarda disso.

É legítimo invadir um terreno que não lhe pertence?

Primeiro temos que diferenciar ocupação de invasão. Invasão é você estar na sala do seu apartamento jogando baralho e alguém chutar a sua porta e invadir sua casa, em que você mora. Ocupação são grandes lotes, terrenos, prédios abandonados e ociosos, usados unicamente para especulação. O movimento só ocupa lugares em situação de abandono. Nós não fazemos invasão.

Qual o perfil dos proprietários de terrenos ociosos?

O que existe são donos que deixam os prédios e terrenos vazios esperando uma operação urbana que vai valorizá-los, para venderem por muito mais. É uma lógica perversa. Nós não achamos isso legítimo e achamos que tem que ter desapropriação, inclusive porque muitos deles estão endividados.

Nós não achamos que um especulador tenha direito a um grande ressarcimento. A lei de desapropriação no Brasil, hoje, é flácida. O cara muitas vezes gosta de ser desapropriado. É bom para o proprietário porque se paga o preço de mercado, à vista. Quem não quer isso? Paga bem.

Os proprietários em geral são os incorporadores ou herdeiros?

Muitas vezes são os incorporadores, nas áreas mais valorizadas. Mas tem também herdeiro. Poder público já não tem mais quase nada.

Num plano teórico, qual é o status do déficit habitacional hoje em SP e o que deveria ser feito em termos de reforma urbana?

O déficit habitacional brasileiro hoje está em torno de 7 milhões de famílias. O do Estado de SP, em torno de 1,5 milhão. Para combater o déficit habitacional é preciso ter uma política de combate ao mercado imobiliário. Não dá só pra construir moradia, é como ficar enxugando gelo.

18 milhões de pessoas se cadastraram no MCMV, e um milhão e meio de casas foram entregues. Ainda assim, o déficit habitacional aumentou 1 milhão. Então você tem que ter uma política de mudança de lógica. Por exemplo, no reajuste de aluguel: o teto tem que ser índice inflacionário. Tem que intervir no mercado.

Em termos práticos, você tem algum alinhamento com algum partido ou liderança?

Nenhum. O MTST tem autonomia em relação aos partidos políticos. É claro que somos um movimento de esquerda e temos simpatia por partidos que defendem posições mais à esquerda, como o PSOL principalmente. Mas tem gente do PT também que defende posições próximas à nossa. Em termos de leitura, sou alinhado com os filósofos mais à esquerda, como Marx.

Mais opções
  • Google+
  • Facebook
  • Copiar url
  • Imprimir
  • RSS
  • Maior | Menor

Preto sobre preto

Por Morris Kachani
06/05/14 15:47

foto roberto

Por Tracy Segal

À frente do Club Noir em São Paulo, companhia teatral que encena peças da dramaturgia contemporânea, Roberto Alvim é um dos principais diretores teatrais da atualidade. Numa realidade fluida, podemos tentar definir seu teatro como uma  experimentação de ponta, influenciando toda uma nova geração de artistas.

Recentemente em cartaz com o “Tríptico Samuel Beckett”, no CCBB de São Paulo, contando com  Nathalia Timberg  no elenco, Alvim inaugurou uma nova fase em seu teatro, com uma visibilidade mais popular. Foi um sucesso de público e de crítica.

Três anos antes Alvim havia apresentado com sua companhia o espetáculo “A amante” no mesmo CCBB e foi vaiado, xingado e teve até que sair escoltado pela porta de trás do teatro. Pessoas reclamavam do minimalismo. Uma das características do seu teatro é a escuridão com pequenos focos de luz fria iluminando os atores com figurinos escuros, o preto sobre preto.

Seu próximo projeto, “Terra de Ninguém”, de Harold Pinter, contava com José Wilker no elenco, quando Alvim foi surpreendido por sua  prematura morte. O  ator havia abraçado o projeto, e abriu mão de várias propostas na TV para se dedicar ao trabalho com Alvim. Chegou a ir a Nova York para assistir a montagem na Broadway da peça. “Compartilhávamos a certeza de que seria um acontecimento estético histórico no teatro brasileiro”.

*

Como você recebeu a notícia da morte do José Wilker?

Eu tinha falado com ele três dias antes da morte. Depois, o Felipe Hirsch me ligou… até pensei em abortar o projeto, não fazia mais  sentido. O teatro lida com isso. De qualquer modo a peça com ele vai existir , nesse lugar, das obras que ninguém nunca vai ver.

Se eu realmente fizer, vai ser uma peça muito melhor, seja qual for. Mesmo que eu venha a encenar esta peça com outro ator, o espetáculo com o Wilker permanecerá num lugar intocável em meu imaginário: esse lugar das obras que nunca virão à luz.

O seu teatro busca este tocar no inominável, na morte. Como foi o choque de se deparar com a morte concreta?

A personagem dele na peça  do Harold Pinter era alguém no umbral da morte. Na iminência de se tornar essa fantasmagoria. Antes que a gente tivesse se preparado, ele se configurou como ausência. Acho a morte uma coisa bela e terrível. Você é obrigado a encarar a morte de forma bruta. A morte prematura. O Wilker era mais saudável do que eu. Era mais provável ele receber uma ligação sobre o  meu óbito (risos).

O teatro só tem sentido para este encontro do incontornável com o implacável. Quando esse encontro se dá antes que a gente espere, não tem sentido. O Walmor Chagas foi um cara que teve uma morte exemplar. Ele decidiu sair de cena. Eu senti um respeito gigantesco por ele. Mas no caso do Wilker…

Você acha a arte contemporânea muito elitista, hermética?

Hermético é aquilo que não instiga o nosso imaginário. Existe uma diferença entre ser impenetrável e ser enigmático. Toda arte contemporânea é enigma, mas tem que nos instigar a procurar por todos os sentidos possíveis.

Claro que existem obras impenetráveis, são obras ruins , egocêntricas, narcisistas. Que não deixam o outro entrar. O enigma propõe a emancipação do indivíduo. As respostas serão inventadas por cada um que dialoga com a obra.

Independente de ser enigmática a maior parte das obras contemporâneas são estimulantes para nossa histeria coletiva. Principalmente no cinema, TV e teatro.

Quando  a arte é enigmática e quando é impenetrável?

Não há um quadro de referências: o artista que vai criar. Muitas obras que pra mim são enigmas, para outros serão impenetráveis e opacas. A questão básica: as obras de arte contemporânea  têm que se dar como um final do processo de psicanálise, que é a percepção de que toda busca que nós temos por um significado definitivo, por construir uma identidade, de procura por objetos que incendeiem nosso desejo (produtos, sexo, drogas, etc). Tanto os significados quanto as construções de identidade,  são ilusões. A grande obra de arte tem que nos confrontar com esses campos ilusórios, com a fantasia que perpassa essas instâncias.

O teatro, a arte,  se torna produto?

O artista que repete a forma como modelo, como a moda do uso de tecnologia indiscriminado baseado em cópias, está fetichizando. Criando um rótulo. Um simulacro.

Recentemente você dirigiu a Nathalia Timberg no espetáculo “Tríptico Samuel Beckett” no CCBB. Como foi esse encontro da Nathalia Timberg com a companhia Club Noir e Samuel Beckett?

O ponto é que não houve nenhum ruído entre mim e a Nathalia. Beckett, assim como Harold Pinter, são dramaturgos que inventaram sistemas cênicos radicalmente singulares, e quando faço esses convites a estes atores e eles aceitam, estamos todos partindo do princípio de que faremos obras de invenção.

Um dia no camarim, após uma apresentação do ‘Tríptico”, Natalia falou que pela primeira vez ela não estava fazendo uma personagem, mas um conjunto de sensações  e impressões.  E um amigo, que estava presente, comentou:  “Quem diria que a Nathalia Timberg iria dizer isso.” Ela retrucou irritada: “por quê?” . A Natalia representa o TBC, o teatro mais tradicional enquanto personagem e narrativas.

O  teatro de Roberto Alvim virou uma marca?

Há um tempo um amigo me falou o seguinte: “Quando as pessoas reconhecerem teu trabalho automaticamente, você tá feito, você faz parte do sistema.” Eu acreditei nisso. E lutei pra criar uma espécie de marca, esse conselho faz sentido mas  ele é terrível.

Por exemplo, as mesmas pessoas de quando fiz “A Amante” no CCBB, que me apedrejaram,  foi o maior índice de reclamações , as pessoas pediam o dinheiro de volta, saíam no meio da peça, gritavam, cheguei a sair escoltado. Essas mesmas pessoas agora aplaudem de pé e gritam ‘bravo’ no mesmo CCBB, com o “Tríptico Beckett”. Elas continuam a não ver, mas agora tem a Nathalia Timberg e eu também, eu que virei um brand. Se a obra não era vista antes, no sentindo real, ela também não é vista agora.

Qual a importância da atriz Juliana Galdino, que além de sua esposa é uma das atrizes mais potentes dessa geração, no seu trabalho?

Só faço o teatro que faço por trabalhar com uma atriz como a Juliana – sem parceiros que se irmanem em um posicionamento existencial radical, o trabalho em teatro se torna impossível. É preciso, para um encenador, encontrar atores que se proponham (de um modo integral) a fisicalizar cenicamente proposições extraordinárias, jogos de linguagem excêntricos.

Numa perspectiva histórica onde se insere o teatro de pesquisa no teatro brasileiro?

Podemos localizar o começo de tudo nas encenações de Antunes Filho (com MACUNAÍMA) e de José Celso Martinez Correa (com REI DA VELA); em ambas as ocasiões, houve a instauração efetiva de sistemas cênicos originais, da ordem da invenção. Isso se desdobrou em uma série de outros encenadores ao longo dos anos 80 e 90, nem sempre com a efetividade radical que se deve esperar de obras de arte. A luta entre um teatro que se localiza no campo da arte e um teatro que se localiza no campo da reprodução de técnicas pré-existentes continua a ser travada diariamente em nossos palcos.

Você acredita que o Brasil ainda viva à sombra da cultura europeia?

Em Macunaíma propõe-se que o Brasil nunca será uma civilização como a européia por que o brasileiro não tem caráter: é um sobrevivente amoral que se adapta às circunstâncias mentindo o tempo todo sem coerência ou retidão ética. Mas podemos ir mais além: o Brasil nunca será uma civilização como a europeia. Porque nossa vocação é encarnar as forças da natureza: cruéis, brutais e indiferentes ao sofrimento humano (posto que o sofrimento humano  – assim como a ética –  é uma criação européia; e a Europa mostra-se totalmente inviável em nossa selva: o paraíso tropical é o curaçao das trevas).

 

 

Mais opções
  • Google+
  • Facebook
  • Copiar url
  • Imprimir
  • RSS
  • Maior | Menor

Romário: "não bateria uma foto com banana para dizer que sou macaco"

Por Morris Kachani
29/04/14 19:47

romário2Romário estava indignado na tarde de hoje, por conta da supressão de alguns artigos do projeto Proforte, justamente aqueles que comprometiam a CBF e as federações com uma série de obrigações. “Infelizmente alguns deputados como Vicente Cândido (PT) e Rodrigo Maia (DEM), da bancada da bola, não deixaram passar. A gente ainda vai presenciar muita coisa errada no Congresso, aqui o voto do mal predomina sobre o bem, e não só nos esportes”, desabafou o deputado, pré-candidato de seu partido, PSB, ao Senado.

Nesta entrevista, o ex-craque explicou sua visão sobre a Copa (“fora de campo já perdemos”), trazendo à tona alguns exemplos ilustrativos, como o cálculo do orçamento, que subiu de R$ 25 para R$ 30 bilhões. “No início o governo Lula dizia que 90% da verba seria privada, e o que aconteceu foi o contrário, 90% da verba é pública. Por isso as pessoas têm que se manifestar nas ruas, mesmo”.

Romário também falou sobre a reação de Daniel Alves, que comeu uma banana que foi atirada em sua direção durante jogo do Barcelona. “A reação dele foi dentro de um espírito esportivo, de provocação. Tenho certeza de que ele não quis dizer que era macaco. Macaco é macaco e gente é gente”.

“Eu não bateria uma foto com banana para dizer que sou macaco. Não vejo assim. Infelizmente a hipocrisia no Brasil corre solta”.

*

Como você vê o futebol brasileiro às vésperas da Copa?

Cara, eu posso te afirmar que o futebol brasileiro está em péssimas mãos. A CBF é uma entidade totalmente corrupta. Esse novo presidente que foi eleito (Marco Polo del Nero), demonstrou em pouco tempo que não está preocupado com um Brasil melhor.

Com Ricardo Teixeira era melhor?

Com certeza hoje está pior do que era com o Teixeira, que quando começou sua gestão ainda tinha um objetivo.

E a realização da Copa?

O Brasil perdeu a oportunidade de mostrar uma cara diferente. Não aconteceu nem vai acontecer. O planejamento foi mal feito e a organização pior ainda. A insatisfação do povo tem toda razão de ser. Fora de campo o Brasil já perdeu.

Quem são os culpados?

O governo é o principal culpado, além da CBF. O PT definitivamente não foi bom para os esportes no Brasil, tanto com o Lula quanto com a Dilma.

E as manifestações?

Tem que continuar. O político só é movido a isso. Após os protestos muitos projetos foram votados. Tanto a CBF como o COB (Comitê Olímpico Brasileiro) não são dignos de comandar o Brasil.

Agora que está finalizando seu primeiro mandato, qual sua percepção sobre a atividade política no Congresso?

Falta coragem e atitude para renovar o esporte. A CBF paga muito para que um deputado se manifeste a favor dela. E aqui, infelizmente, a parte financeira está acima de qualquer interesse.

Mas não estou decepcionado com o Congresso. Não é diferente do que eu imaginava e do que o povo já sabe.

Existe um clima de insatisfação?

Geral, em todos segmentos. Poderíamos ter deixado um legado positivo nas doze cidades-sede, principalmente em termos de mobilidade urbana. 80% dos projetos de mobilidade urbana foram retirados da matriz de responsabilidade. E dos 20% que sobraram, quase 60% não serão entregues a tempo do evento. Enquanto isso, o orçamento, que era de R$ 25 bilhões, subiu para R$ 30 bilhões.

O Brasil poderia muito bem ter aceitado organizar a Copa como aceitou. Mas era preciso fazer de outra forma. O governo Lula dizia que 90% dos investimentos seriam privados e o que a gente vê é o contrário, 90% é público.

E quem está lucrando com a Copa?

Cara, a CBF, a Fifa e alguns políticos corruptos. Só eles e mais ninguém. Ontem soube através do blog do Juca Kfouri que nunca a CBF lucrou tanto como no último ano.

É otimista?

Sempre fui otimista e pró-ativo. Especialmente neste ano, em que o povo tem a oportunidade de pelo menos melhorar seus governantes, com as eleições.

Qual será sua plataforma eleitoral?

Em qualquer posição política eu assumo principalmente a moralização da coisa. Seja no combate ao crack, no tratamento aos portadores de doenças raras, na educação.

Que tal trabalhar em uma casa presidida pelo senador Renan Calheiros?

O povo já se manifestou. E a razão está com o povo. A coisa aqui poderia ser diferente, infelizmente ainda lidamos com a mentalidade de políticos velhos.

Qual a relação do futebol com a política?

Cara, a corrupção que tinha na política passou para o futebol. Um exemplo é o Bom Senso, que foi criado pelos jogadores. Eles sabem melhor do que ninguém sobre o dia a dia, sobre a questão do calendário, e assim por diante. Sentaram com os mandatários da CBF e deu em nada.

Você acha que o Brasil leva a taça?

Dentro de campo temos bastante chance, especialmente depois do que vimos na Copa das Confederações. Felipão trouxe um futebol positivo, moderno. Mas não acho que o Brasil seja a melhor das 32 seleções. Acredito que Alemanha seja melhor dentro de campo, mas nem sempre ganha o melhor. Argentina e Espanha também são favoritas.

E o Neymar?

É a nossa grande esperança. Não está num momento muito bom, assim como o Paulinho e outros companheiros da seleção, que estão na descendente. Jogar futebol é isso, às vezes você cai de produção. Eu já participei de Copa. E na Copa, você tem que trocar o chip.

O ambiente é único, eles sabem que o povo está totalmente decepcionado com as falcatruas.

Que achou da reação do Daniel Alves, que comeu a banana que lhe foi atirada durante jogo do Barcelona?

Se você reparar, muitas dessas histórias de racismo têm acontecido com jogadores da seleção brasileira, na Europa. É que o Brasil é o time a ser batido. Pode haver alguma manipulação aí.

Mas racismo é coisa do passado, não era para estar acontecendo. Punições fortes são necessárias.

E essa história de “Somos todos macacos”?

Daniel Alves com certeza não quis dizer isso. Macaco é macaco e gente é gente. Eu não bateria uma foto com banana para dizer que sou macaco. Agora, cada um é um. Infelizmente a hipocrisia e o oportunismo correm soltos no nosso país.

Mais opções
  • Google+
  • Facebook
  • Copiar url
  • Imprimir
  • RSS
  • Maior | Menor

A vida sem Luciano do Valle

Por Morris Kachani
25/04/14 19:04

netoJosé Ferreira Neto, 47, o Neto, trabalhou dez anos com Luciano do Valle. Foi o comentarista que por mais tempo atuou ao lado do narrador esportivo, falecido no dia 19.

Esta é a primeira entrevista de Neto desde então. Ele relembra o companheiro e à sua maneira, também discorre sem meias palavras sobre a Copa (“acho que 12 sedes é muito), favoritos – Brasil, Alemanha, Argentina -, CBF (“estamos despreparados democraticamente para um futebol melhor”) e o status atual do futebol jogado no Brasil (“medíocre”).

*

Qual o legado de Luciano do Valle?

Acho que todo narrador de hoje deve ou imita o Luciano.

Até o Galvão Bueno?

Já não posso responder porque não sou amigo dele. O Galvão é um baita narrador. O problema é que ele está há 30 anos, pode gerar antipatia. Mas assim como no caso do Luciano, ninguém vai substituir o Galvão. Nem o Cleber Machado, nem o Luís Roberto, nem o Milton Leite.

Qual o estilo do Luciano?

Luciano é único como Pelé, Senna, Picasso, Mandela. Pega um gol de todos os narradores. Todos têm oscilação. O gol dele é reto.

Ninguém mais vai narrar como ele narrava. O Luciano narrava o jogo. Ele não tinha bordões. Vinha da alma, do coração. Por exemplo, quando narrou “gênio, gênio, gênio” em um gol meu de bicicleta, ou “não há palavras para descrever”, sobre um lance do Zico. Aquilo não havia sido pensado, saiu na hora. Por isso que ele é mito. E era um narrador completo, narrou todos os esportes, vôlei, basquete, box.

Por que o apelido dele era “bolacha”?

É que antes de emagrecer, ele tinha um rosto bolachudo.

Como era sua personalidade?

Mais calado que falador. Nunca reclamou de nada. Sua maior virtude era a gentileza no trato com as pessoas. Nesse meio tem mascarado pra caramba, gente que se acha o dono da bola.

O que representa a perda dele para o futebol?

É como se o Neymar não fosse jogar a Copa. Sem o Luciano, perdeu-se uma referência.

Luciano teve fases melhores e piores, não?

Verdade que já tinha 66 anos. Não tinha o mesmo pique de quem tem 40. Mas ele sempre superou as dificuldades, por exemplo, para memorizar algum nome. A pessoa entrava na transmissão da Band, ouvia a voz dele e não saía mais.

Como funcionava sua dobradinha com o Luciano?

A gente tinha uma amizade muito forte. Sempre jantávamos nos melhores restaurantes da cidade, após as transmissões. Sempre um bon vivant. Em São Paulo por exemplo, era no Rubayat. Gostava de massa e vinho – mas eu não bebo. Os jantares se estendiam até três, quatro da madrugada.

O que aprendeu com ele?

Comecei como convidado. Foi ele que me orientou sobre posicionamento de voz, câmera e entrada – sempre comentei no momento que ele respirava. E também me orientou a não ser tão duro com as palavras.

Mas você não é duro com as palavras?

Me orientou no sentido de pegar leve com as polêmicas e soltar comentários mais inteligentes, sobre a tática do jogo. Por exemplo, dificilmente erro pênalti. Em cada dez, acerto oito. Ou uma substituição: sugerir a troca de um meia por um centroavante, um lateral por um volante, e assim por diante. É que eu enxergo muito bem o jogo.

Ele sempre concordava?

Nem sempre concordou mas foi sempre gentil. Havia jogos que eu achava uma merda e ele os transformava em grandes espetáculos para não perder a audiência. Não sei em que outra TV você pode fazer isso.

Mudando de assunto, que está achando da Copa?

Muito triste de não estar ao lado dele. Ao mesmo tempo estou com muito gás. Gosto muito do Téo José, acho que vamos fazer uma boa dobradinha.

Qual a diferença da Band com a Globo, do ponto de vista das transmissões?

A liberdade de eu falar o que quiser. Vou fazer esta Copa e a da Rússia, em 2018. Aí vou parar. Porque quero viver melhor, viajar menos, ao lado da família. Guardar uma poupança de 10, 15 mil reais e parar. Quero parar de trabalhar.

E as polêmicas em torno da Copa?
Se você pensar que o país precisa ter calçada, escola, hospitais, não era pra ter Copa. Mas também um evento como esse pode ser muito positivo. O problema é o jeito que usam o dinheiro.

Acho que 12 sedes é muito. Deviam ser 6. Em um país tão grande, você não pode ter 12 sedes com tantos problemas como aeroportos e infra-estrutura. Agora, não sou expert sobre o que o governo tem que fazer. Se tem gente roubando aí não sou eu. Para minha profissão é importante e vou adorar cobrir a Copa. E na Copa das Confederações, o povo mostrou emoção, ao cantar o hino brasileiro em voz alta.

Você acha que a gente leva esta Copa?
Se a seleção jogar o que jogou na Copa das Confederações, e se o Felipão chamar o Luis Fabiano e o Fabio (goleiro do Cruzeiro), leva. Mas o Felipão não vai chamar.

Para mim tem três seleções favoritas: Alemanha, Argentina, Brasil. A Espanha está com um time mais velho, acho que não leva. E cinco fenômenos:  Schweinsteiger, Neymar, Messi, Cristiano Ronaldo e Robben.

Que achou da eleição na CBF?

Marco Polo del Nero está há 25 anos na Federação Paulista e foi eleito presidente, até 2015. Votação foi unânime e não havia oposição. Isso mostra que estamos despreparados democraticamente para um futebol melhor.

Sempre foi assim, não?

No Corinthians por exemplo, o Mario Gobbi sucedeu o Andrés Sanchez, que fez um mandato. Mesmo sendo um cara dele, ninguém pensa igual.

O Itaquerão foi um acerto?

Não para o Corinthians. O clube gastou muito mais que deveria, não precisava de um estádio de Copa do Mundo.

Qual o status atual do futebol jogado no Brasil?

Medíocre. E não vejo um grande futuro.

 

Mais opções
  • Google+
  • Facebook
  • Copiar url
  • Imprimir
  • RSS
  • Maior | Menor

Viagem ao inconsciente de Gerald

Por Morris Kachani
24/04/14 16:12
Selfie do Gerald, feita em seu apartamento, em Nova York

Selfie do Gerald, feita em seu apartamento, em Nova York

Por Tracy Segal

A naturalidade de Gerald Thomas é um enigma. Hoje ele afirma ser americano de carteira, mas no wikipedia consta ser carioca. Conta que sua mãe foi uma psicanalista judia de ascendência inglesa, que seu bisavô pertencia ao histórico grupo literário Bloomsbury Group ao lado de ilustres escritores como Virginia Woolf. Gerald fala com sotaque nativo pelo menos três idiomas: o inglês, o alemão e o português.

Em entrevista via skype de seu apartamento em NY conversamos com esse personagem beckettiano sobre sexo (“eu sou um pornógrafo, me prostituí quando tinha 14 anos”), Brasil (“O Brasil não tem patriarcas, não tem corte suprema, não tem constituição”), teatro, guerras, preconceitos.

Um homem sem raízes, espalhado pelo planeta. Devoto de Obama e sobrevivente da contracultura. Um obsessivo pelo teatro conhecido pelas polêmicas midiáticas como mostrar a bunda para um teatro municipal lotado que vaiara sua opera wagneriana, e que lhe rendeu um processo incômodo em terras brasileiras.

Está em cartaz em São Paulo com “Entredentes”, no Sesc Consolação, com Ney Latorraca, Edi Botelho e Maria de Lima. Uma peça que fala de muros (Berlim, Lamentações) e o  drama humano com o humor inerente de Gerald Thomas. “Tem uma buceta no palco, enorme. Só as mulheres mais conservadoras não vêem. Uma tremenda bucetona ali. E as pessoas saindo pelo cu. O que entra pela boca sai pelo cu.”

Atualmente Gerald se divide entre arte e ativismo político no Partido Democarata dos EUA. Está trabalhando com a “New York Dry Opera Company Theatre” e vai remontar ainda este ano a sua peça “Nowhere Man”.

*

Vamos do começo. Onde você nasceu?

Nasci nos EUA e fui para o Brasil aos 7 anos.  Eu só vivi no Brasil entre 7 e 14. Depois disso nunca morei no Brasil, sempre em hotel. Não criei raiz, criei um teatro.

Como foi essa época no Brasil?

Eu fazia o curso do Ivan Serpa. Eu tinha 9 anos e a galera tinha 30. Aos 9 anos, entender o que era Duchamp!  Mas eu entendia, adorava. Warhol, Pollock. Eu entendia que não era ilustração. Demorou um tempo pra entrar na cabeça. Aí o Hélio Oiticica, que me comia aos 13 anos, falava: “se não  entrar pela cabeça  entra pelo cu, boneca”. Eu vivi essa transição dos anos 60 e o mundo virou hoje essa caretice do twitter…

Mas tem uma nova geração bi.

Mas tem também os skinheads dando porrada nos gays na Paulista. O legado que a gente pode ter deixado é isso. Por que eu não acredito em homossexualidade e não acredito em heterossexualidade, eu acredito em sexualidade.  Eu sou da época em que fazer orgia era a regra.

Você acha que no Brasil existe um hipererotismo?

Numa praia carioca tem uma coisa de se roçar e se beijar. Uma demonstração do sexo, mas não trepam. Eu lido com erotismo meio Bataille, quebrando barreiras do good behaviour.  Tem uma indulgência com fantasias e coisas proibidas. Estados Unidos e Alemanha estão no fronte, têm uma indústria pornô onde só se mija e caga. Também muito moralista. Não se trepa mais normalmente.

Eu sou um pornógrafo. Eu faço, eu não assisto. Eu já me prostituí. Aqui em NY aos 14 anos. Você não tem noção o que é um garoto pegar um casal de velhos moralistas de Ohio pedindo absurdos  dentro do quarto de um hotel. Na noite anterior eles rezavam com os filhos e depois estavam pedindo pra eu cagar na boca.  

São os muros?

Evangélicos histéricos. Eu tive a maior aula de hipocrisia. Essa turma de Utah, os mórmons. Mas se você se solta sexualmente você não tem rancor, não tem ódio. Eu sou filho dos anos 60 onde a norma era uma orgia. Era uma suruba.

O que você acha da situação da Palestina?

Eu odeio muros. E olha que vivi intensamente o muro de Berlim também. Eu acho horrível! Uma população que passou por várias diásporas, agora criarem uma separação física. Entendo que tem um Hamas, um Hezbollah. Mas eles não vão deixar de existir por causa de um muro.

Como é que uma pessoa da década de 60 como eu, que marchou contra Vietnã,  da contracultura, como que eu posso aceitar que judeus criem barreiras físicas, reduzindo Gaza a uma faixa mesmo, com uma população  inteira que não tem como crescer? Uma favela.

Como o Rio.

Não gosto das favelas do Rio, que ficam na cara da Zona Sul e todos achando normal a miséria.

Mas nos EUA também tem muito preconceito.

Se você pensar como o mundo trata o islâmico, sim. Tenho amigos islâmicos, muitos são gays, ou negros, mas se eles disserem que são islâmicos  todos fogem. Qualquer tipo de classificação, humilhação ou perseguição é horrível. Eu tenho uma filha negra no Rio de Janeiro. Ela é negra e sofre com isso. Quando descobrem que ela filha do Gerald Thomas aí tudo muda. Isso é ridículo.

E a mídia brasileira?

Eu não posso levar a sério. Tem uma coisa no jornal brasileiro que  é muito irritante, que é uma chamada de ponta a ponta de capa com foto de um gol.  Isso é escandaloso. Para o New York Times um coast to coast é “Man walks on the moon”, se não é só uma coluninha.

E a Caras?

Eu adoro a Caras. Eles me levaram pra Israel, eu nunca tinha ido, em 2001. Tudo pago. Eu era convidado do governo, horrível dizer isso,  Ariel Sharon. Mas o Arafat estava vivo. Eu falei: eu quero ir lá para Ramallah. Ficaram loucos e me disseram: você não pode, é convidado do Ariel . Eu disse, tô cagando. 15 minutos de distância, mas que demoram três horas.  Você chega num lugar destruído. Eu fui e apertei a mão do Arafat. E lhe falei, você é considerado terrorista hoje, Ariel Sharon foi considerado terrorista em 48.

Volto a Jerusalém sempre que posso. Todo mundo se dá bem e toma um café com cardamomo.

O Brasil funciona?

Não. Não tem founding fathers [patriarcas], não tem um supreme court [corte suprema], não tem uma constitution [constituição].

Você acha que é uma questão cultural?

Tem um juiz na suprema corte americana que diz: “Nós somos um país experimental, nós somos um corpo em  movimento, pela diversidade.” Quem é o americano? O americano norueguês, o americano lituano, americano coreano? Aqui é o lugar de emancipação do negros, liberação das mulheres, direitos dos gays. É claro que tem os doidos que matam vinte numa escola. O Snowden que delata todo mundo. Mas causa mudança.

Tem a cena da Maria em “Entredentes” onde ela descasca o Brasil enquanto o Ney a vaia. Então ela para e diz que esse discurso é do diretor e começa a elogiar o Brasil pelas coisas mais horríveis, como o cheiro de mijo. Como assim?

O discurso da Maria é meu também. Metalinguística. Eu decupo o hino nacional , que deve ter sido escrito por um alemão. Um povo heroico o brado retumbante!? Eu falo: estamos retumbando há séculos. Retumbado povo. Tumba. Morto. Grito. Morte. É redonda a palavra. E todo mundo sentado assistindo, impassível.

E as manifestações de junho?

Eu vi as manifestações e achei do caralho, mas acabou. Falta de história. Aqui nasceu a distorção da guitarra, nasceu Hendrix, Bob Dylan, o protest song. Aí no Brasil, teve uma geração tropicalista, mas não tem uma história de luta. A independência aqui foi sangrenta. Pro brasileiro tá tudo certo. Flamengo, chopp…

Mas qual o plano? Não tem organização.   Claro, sou cético, niilista. Você vê a revolução egípcia. Primavera árabe e deu no quê? Eu tô mais velho e menos entusiasmado pelas mudanças.

Você acredita que o problema do Brasil seja cultural?

Tem a teoria do Lévi-Strauss de que país quente é isso. Desmentido pela existência do Mandela. No frio você  precisa se organizar, planejar seu dia.  Você não pode ficar numa calçada em Realengo e passa um cara que grita: quer um chicabon? Às vezes eu acho que é a realidade ideal. Ninguém briga e fica tudo bem. Aqui fica essa luta. A Criméia, a Rússia, a Polônia que já foi de tantos países! Todo mundo sofrendo, pálido com falta de vitamina D. Só pra estabelecer uma fronteira, um muro. Agora essa situação na Ucrânia, com os judeus sendo chamados para  se registrar. Isso já aconteceu há cem anos, na primeira guerra mundial,  foi ali que começou o nazismo oficial.

E Obama?

Isso merece um exemplo. [Gerald faz uma tour eletrônica pelo seu apartamento no East River , vejo várias fotos presas na parede do Obama com Michele, no jardim da Casa Branca, entre fotos de Beckett e  desenhos próprios. Pendurado o macacão amarelo que usou no 11 de setembro. ]

Eu amo o Obama. Conheci ele na campanha, viajei 16 Estados. Sou filiado ao partido Democrata.

Eu tenho a impressão de estar conhecendo um outro Gerald, o americano?

Eu sou americano. Eu voto aqui. Eu sou um fanático democrata. Eu assisto o canal do Congresso e Senado americano. Tenho cartas que recebo da Casa Branca.

Eu sou engajado. Apaixonado. A única coisa que me interessa nisso, uma obsessão, é participar das reuniões semanais sobre o Health Care (sistema de saúde nos EUA). Vou a todos as reuniões.  Levo isso muito a sério, eu sei que existem interesses, mas ainda acredito.

Drogas?

Eu me droguei muito. Mas eu só tinha uma droga, cocaína, e só pra trepar. Ficava três dias trepando, já não sabia mais com quem. Eu não bebo, detesto álcool. As pessoas cheiram e bebem e fica todo mundo com aquela cara de Francis Bacon. Eu tive uma experiência no final do ano passado depois de anos sem nada. Eu fui numa festa e bebi um suco de cranberry por que era a única bebida não alcoólica da festa. E bebi, mas tinha cristal, special k, um coquetel. Já fiquei louco e desmaiei. Depois disso liguei para o meu cara e peguei 20 gramas, fiquei 10 dias direto.

Você já se considerou viciado?

Não acredito nisso. Cigarro que é o mais difícil,  eu parei de um dia para o outro. Nunca fui de cheirar direto, comecei muito cedo com Hélio Oiticica. Eu comprava pra eles no Bronx, por que eu tinha 14 anos e ninguém podia me prender.  Eu tomei LSD, maconha, odeio os retardantes. Eu tomei ecstasy e nada. A única coisa é um canudinho. Eu sou um workaholic, eu trabalho. Escrevo muito. Tenho vários livros, não sei quantas óperas. Como você vai pegar um avião para Pequim cheirado? Mas eu tirava dias para orgias.

“O teatro morreu”?

Eu ouço esta frase desde os 16 anos. Na Inglaterra estava pichado nos muros da escola. Morre e renasce.

Mas aqui há cada vez menos público no teatro.

Em NY, a gente tinha o movimento off off Broadway. Hoje o experimentalismo acabou. Você sempre tem uma geração correndo atrás da outra sem reconhecer o novo. Mas agora não se experimenta mais por que você tem o compromisso de fazer dinheiro. Esse compromisso não te permite fazer mais associações joycianas. Você tem compromisso com o sucesso.

Hoje eu faço teatro com o Ney Latorraca. Eu vejo o pessoal da praça Roosevelt, mas agora eles têm uma escola, têm compromissos. Sempre assim, já vi esse filme, eu sou da geração Godard,  Glauber.  E antigamente a gente vivia de box offic [bilheteria], agora precisa de sponsor [patrocinador].

O que causou esta mudança?

Por que estava se investigando uma parte interessante do cérebro que ainda questionava as condições existenciais. Agora com 140 caracteres o que você vai dizer? No facebook a foto da comida é mais importante do que a comida. Com instagram as pessoas se fotografando entrando, saindo…. pra que? Quanta bobagem. Agora ninguém olha para o outro. O teatro é o interesse pelo ser humano. Agora o interesse reside aqui [aponta o aparelho celular]. Cada revolução gera uma contra-revolução. Veremos.

 

Desenho de autoria própria que integra livro lançado ano passado

Desenho de autoria própria que integra livro lançado ano passado

 

Mais opções
  • Google+
  • Facebook
  • Copiar url
  • Imprimir
  • RSS
  • Maior | Menor

Os novos planos de Pablo Capilé

Por Morris Kachani
23/04/14 11:39

No horizonte do coletivo Fora do Eixo, 2014 é um ano estratégico. Nas próximas semanas, será lançado o portal do Mídia Ninja, que pretende se tornar um hub do midiativismo. São cerca de 100 ativistas ligados diretamente, além de 200 colaboradores e uma lista de aproximadamente 100 articulistas independentes. Hoje a página do facebook do Mídia Ninja recebe 5 milhões de visualizações por semana.

Para junho, durante a Copa, o coletivo está envolvido com a ‘República da Cinelândia’, em que cerca de 200 militantes ocuparão com barracas o centro do Rio criando uma Constituição própria como forma de provocação, em que a maconha é legalizada e a polícia, desmilitarizada, por exemplo.

O segundo semestre contará com nada menos que 140 festivais de música. Para o período está também programado o lançamento do “Emergência”, espécie de Fórum Social Mundial do século 21, reunindo ativistas e redes sociais de várias partes do mundo, em São Paulo.

Com alcance em 500 cidades, o Fora do Eixo conta com 2 mil colaboradores pelo país e cerca de 60 casas sede, nas quais vivem aproximadamente 400 pessoas, em um regime próprio de convivência em que praticamente tudo é compartilhado. Nos planos do coletivo para o futuro próximo consta também a ideia de adotar crianças.

pablo1Pablo Capilé, 34, cuiabano, é quem está encabeçando estas empreitadas. Embora já venham atuando desde 2005, Capilé e o Fora do Eixo ganharam mais exposição no noticiário após os protestos de junho. Críticas e acusações vieram à tona. Para Capilé, o saldo é positivo. De acordo com ele, o coletivo cresceu desde então.

Segundo Capilé o coletivo recebeu apoio de diversas fundações internacionais desde então. Verba pública, de acordo com ele, representa uma parte muito pequena no balancete do Fora do Eixo. “A verdade é que a gente devia receber muito mais”.

Nesta entrevista ele explica como seu coletivo se posiciona politicamente: “o PT não é um câncer. Do PSTU até a Marina, a gente entende que é possível dialogar”. Pablo critica Dilma, a gestão atual do Ministério da Cultura, e oferece sua versão sobre os protestos de junho.

*

Quais são as bandeiras do ativismo?

A variedade da pauta é imensa. Vai desde a necessidade de regulação dos meios de comunicação passando pela necessidade de desmilitarizar a polícia, a reforma política, a regulamentação das drogas, a criação de um ambiente favorável ao debate ambiental. Em suma, dar visibilidade aos invisíveis, conseguir conectar um país continental que tem 5343 cidades.

Parte significativa destas cidades está dentro de uma invisibilidade, muitas vezes não conseguem apresentar suas inteligências colocadas.

Como enxerga a Copa?

Os dois lados têm argumentos muito bem fundamentados. Você tem uma construção simbólica muito forte em torno da Copa, um encontro civilizatório num país que nos últimos 15 anos conseguiu se tornar potência global. Mas ao mesmo tempo esta é Copa das remoções, pautada por um estado de exceção defendido pela FIFA, pouco discutido com a parte debaixo da história toda, coordenada por federações de futebol pouco transparentes.

Existe um clima de insatisfação no ar.

Quando você tira 40 milhões de pessoas da zona de extrema pobreza, e elas se estabilizam, você estabelece um ambiente favorável para essa explosão. Eu tenho uma visão muito particular sobre os fatos que levaram à explosão de junho.

Uma utopia acontece a partir de 2002, quando um torneiro mecânico sai do chão de fábrica para se tornar presidente do Brasil. Isso estimula pra caramba simbolicamente um cara como eu, em Cuiabá, que tinha dificuldade para acreditar que era possível. Assim as redes começam a surgir e fortalecer.

Mas em determinado momento, nos 4 anos de  governo Dilma, alguns alicerces principais do fortalecimento dessas utopias são rompidos. O debate da cultura, da comunicação, do meio ambiente, dos direitos humanos, da juventude, tudo isso deixou de ser uma prioridade. No Lula era prioridade. Entramos em um ciclo desenvolvimentista onde esses temas que eram muito importantes para essa geração, deixaram de ser.

Isso se soma a um processo de criminalização que veio acontecendo contra as lutas progressistas no Brasil. O Mensalão foi uma grande porrada, instigou parte mais conservadora da população a se levantar e combater em certa medida as reformas de um governo popular.

Então o levante das forças conservadoras se soma à insatisfação por parte de uma série de movimentos sociais, criando todo um ambiente.

Para mim o que aconteceu está muito distante de terem sido só os vinte centavos, e discordo completamente de quem tenta privatizar a explosão a partir de um tema específico. Foi uma série de fatores.

Qual a diferença entre São Paulo e Rio?

São Paulo é uma terra das certezas, o Rio é uma terra das utopias.

No pós-junho, vejo diferenças. No Rio, Cabral derreteu. Em São Paulo, quem tomou foi Haddad, em tese Alckmin se manteve estável mesmo sendo responsável por 99,9% das coisas que aconteceram.

No Rio a polícia derreteu, sua credibilidade está no chão. O debate sobre a repressão é muito mais intenso, a necessidade de desmilitarização está na boca dos movimentos e das pessoas. Em São Paulo, a polícia continua estável.

No Rio os movimentos estão cada dia mais conectados. Aqui em certa medida deram uma atomizada. O Rio puxou a greve dos garis. São Paulo em certa medida puxou a Marcha pela Família com Deus. Então acho que o Rio amanheceu melhor de junho, que São Paulo.

Mas mesmo amanhecendo de forma diferente do que o Rio, os movimentos de São Paulo ganharam muita força, se ampliaram e continuam ocupando as ruas e fazendo os debates fortes nas redes. MTST ou os movimentos de periferia da cidade, entre outros, demonstram isso com vigor.

Como enxerga o tecido social brasileiro?

Traduzo a partir de três grandes campos. Você tem os estabelecidos – a grande mídia, os partidos, o empresário grande, que são 2% do Brasil. Você tem os desorganizados por outro lado, que é o povo, lutando pelo seu dia a dia. E entre eles tem o ‘meinho’. Esse ‘meinho’ fica tentando falar pros desorganizados como resignificar a lógica estabelecida.

Tem dois grandes blocos este ‘meinho’: um que faz disputa de classe, e um da disputa do imaginário. O de classe está mais ligado à esquerda clássica marxista, com a defesa de temas fundamentais, desde o trabalho de base. Envolve desde MPL a juventudes de alguns partidos, além de MTST etc.

O outro lado que disputa o imaginário está falando sobre o futuro capital simbólico, está na guerra de meme, na disputa narrativa.

Um está mais próximo da economia solidária, o outro da economia criativa. Um dialoga mais com Estado, outro com mercado. Um foca no enfrentamento das lutas de forma mais tensa como barricada etc, outro encara a disputa simbólica como ferramenta de diálogo.

Muitas vezes os blocos têm dificuldade de dialogar. Estes grupos sempre tiveram dificuldade de conviver por disputarem a presidência do ‘meinho’.

Os movimentos tradicionais de base e de classe conseguem reunir 3, 4, 5 mil pessoas depois de junho. Já as redes de imaginário conseguem fazer com que mais gente se envolva.

Protestos de massa como os de junho podem se repetir?

Óbvio que pode não repetir a explosão de junho, mas não vai parar de crescer. É uma greve de polícia na Bahia, outra de gari, ocupações pelo Brasil inteiro, o parque Augusta, a luta antihomofóbica, e por aí vai.

Qual sua interface com os partidos políticos?

Do PSTU até a Marina a gente entende que é possível dialogar, conversar e quando solicitado participar. O PSOL tem crescido. O próprio PT tem se resignificado. Acho absurda a tentativa de criminalizar as lutas que o PT desenvolveu para o país. As pessoas tentam vender o PT como se fosse o Mensalão.

Não, o PT tem 30 anos, conseguiu tirar 40 milhões de pessoas da pobreza, colocou o Brasil no cenário internacional. Óbvio que tem contradições e equívocos mas tentar transformar o PT num câncer das lutas políticas é de uma imbecilidade tremenda. E estou longe de ser petista, não sou filiado.

Que pensa sobre nossa classe política?

Para haver reforma política é necessária a compreensão de que não dá para despolitizar o debate, ficar falando que todo político é um merda, que os partidos não prestam, que no Congresso só tem picareta. Se você criminaliza a política, abre porta para muitos perigos.

E sobre as críticas recebidas ano passado?

Uma comunidade como a nossa tinha tudo para se abster da relação com o resto da sociedade, que é o que maioria das comunidades fazem. Elas se afastam para não serem criminalizadas por uma visão moralista em torno da opção de vida que fizeram. No nosso caso, o que desencadeou o debate foi o post de uma cineasta que era patrimonialista, defendendo a propriedade privada, o direito autoral proprietário, numa visão muito parecida com a do blogueiro Reinaldo Azevedo. Acusando-nos de trabalho escravo, de que somos uma seita, de que ninguém lia ou assistia filme. Como assim? Estamos conectados na rede o tempo todo, os parâmetros de formação intelectual são completamente diferentes do século 20.

Não viemos de uma base de partido, nem das lutas sociais tradicionais, e nem de São Paulo. No final das contas a gente afronta tanto a direita como parte significativa da esquerda, que vive uma crise de protagonismo, que te chama de novo capitalista.

No congresso do Fora do Eixo, em 2013

No congresso do Fora do Eixo, em 2013

Qual a atuação política do Fora do Eixo?

Inicialmente entramos com uma política muito radical para tentar mudar o mapa musical brasileiro. Na música o debate partiu principalmente dos artistas que moram em São Paulo. É óbvio que não tem cachê em determinadas situações. São lugares onde não tem estrutura, não tem investimento público, só de passagem pode ser 15 mil reais, você vai ter um prejuízo inclusive. Então não ache que você vai ganhar a mesma coisa tocando na rua Augusta e no resto do Brasil. O problema de distribuição de renda é da Dilma, não meu.

Em parte a ausência de um protagonismo por parte do Ministério da Cultura fez com que uma parcela da classe cultural canalizasse suas frustrações para nós. A gente com esse orçamentozinho é mais debatido que o Minc.

A verdade é que os últimos 4 anos no ministério estão muito aquém do que aconteceu nas gestões de Gilberto Gil e Juca Ferreira. As políticas foram descontinuadas, as utopias não foram alimentadas. Veio primeiro Ana de Hollanda, que foi uma não-ministra. Se Marta tivesse vindo depois de Juca, a cobrança seria muito maior, e ela teria feito uma gestão melhor do que a atual. Somos uma mistura da estratégia dos pontos de cultura da gestão Gil, com cultura digital. Por isso defendemos o legado dessa construção.

Qual o tamanho, alcance e faturamento do Fora do Eixo?

Atuamos em mais de 500 cidades brasileiras, nos 27 Estados, através de iniciativas variadas. A rede é multifacetada e diversa, você não tem condição de fazer uma sistematização completa com todos os dados. É uma rede que trabalha o tempo inteiro com a perda de controle. Não tem uma central que coordena essas paradas todas.

Como funcionam a universidade e o banco?

A universidade consiste na troca de repertórios. São vivências nas casas. Todos integrantes são corpo docente, e todas estruturas são campos. Por exemplo, a Ivana Bentes, diretora da escola de comunicação da UFRJ, é um corpo docente que roda as casas falando sobre midialivrismo, redes etc. Assim como Juca Ferreira, Emicida e tantos outros, pessoas que sempre circularam entre nós.

E o banco?

O que é o banco? A gente é o único movimento que conseguiu resolver uma coisa que ninguém resolve, que é a disponibilidade dos ativistas. Eles têm disponibilidade 24 hs. Ninguém tem isso. Porque acreditam que isso é bom pra vida delas. O fotógrafo, o designer, o artesão, tudo isso gera recurso. Prestamos serviços para parceiros, para outros coletivos.

Quantos ativistas são?

Hoje são mais de 2 mil pessoas espalhadas pelo Brasil. 400 delas vivendo nas casas. São umas 60, 70 casas. Sobre faturamento é difícil falar um número fechado porque ele muda. Por exemplo, o festival Grito Rock aconteceu em 500 cidades, você não tem clareza de quanto girou, só terá dentro de 3, 4 meses. Se falar que girou R$ 500 mil, pode estar falando de um número maior ou aquém. E vai ter mais 140 festivais no segundo semestre, alguns até maiores.

E editais e recursos públicos?

Um dado importante é de que uma parcela muito pequena dos nossos recursos é proveniente do poder público. Muito pequena mesmo, tipo irrisória, frente às coisas todas que a gente faz. E eu acho que a gente tinha que receber muito mais investimento público. Lembre que até o Rock in Rio recebe verba pública. Assim como os jornais e TVs. Não é demérito nenhum você receber.

Em 2014 não recebemos nada e nem em 2013.

Como funciona a vida coletiva?

Eu diria que  morar junto, dividir a angústia, a felicidade, a tristeza, faz você de você um forte por não se sentir só. É a força motriz.

É verdade que vocês estão com plano de adotar crianças?

Nasceu o Benjamin aqui dentro da casa, há um ano e pouco, o tempo está passando. Foi o primeiro bebê, além de outros bebês a gente acha fundamental a adoção sabendo que tem um monte de criança precisando. Temos um espaço coletivo para a criação dessas crianças, temos condições para adotá-las. Estamos começando a estudar e a saber como a parada funciona.

Que pensa da Marina Silva?

Acho que ela ainda não conseguiu traduzir para quem é entusiasmado com ela quais são os próximos passos que ela quer dar, acho que isso está meio nebuloso. Ainda é muito superficial e plástica essa conexão dela com o Eduardo Campos. Ela não fez um download disso.

Qual sua história pessoal?

Sou de Cuiabá, fiz comunicação e direito na faculdade, mas não graduei em nenhuma. Já fazia teatro, audiovisual e música desde pequeno, meus pais sempre incentivaram. Meu pai é historiador e minha mãe, assistente social, foi coordenadora do Mobral.

De onde surge a militância social?

A consciência social veio desse ambiente e também com minha mancha no rosto, ela também ajudou nisso, ajudou eu a ter uma percepção do diferente. Nasci com ela -é um hemangioma. Então a perspectiva do diferente sempre esteve comigo, em determinados momentos recebi tratamentos diferentes, e isso me aproximava de outros que também eram vistos assim… Mas hoje não, a partir do momento que resolvo essa questão, vou muito forte pra cima.

Qual sua rotina?

É um flow contínuo. Durmo pouco, umas 4, 5, às vezes 3 horas, inclusive sábado e domingo. A gente não trabalha, a gente vive né, você tem uma lógica diferente de dividir o tempo. As pessoas geralmente trabalham sob tortura das oito às seis, das seis às dez elas gastam os créditos que ganharam sob tortura para esquecê-la, e depois têm pesadelo nas oito horas seguintes para conseguir lidar com essa esquizofrenia.

A gente vive 18 horas por dia e sonha seis. Cada dia uma dinâmica nova.

Quais são os planos do Fora do Eixo?

Estamos lançando o portal do Mídia Ninja. Ideia é criar um hub comum não só com nosso conteúdo mas de outros coletivos e redes. Atualmente temos 2 mil colaboradores com a gente. Muitos coletivos se chamam Mídia Ninja e não necessariamente têm uma ligação direta com a gente. Haverá uma zona de curadoria manual, e um roll com uma timeline infinita onde vai entrar o que todo mundo postar. Vai ter também um live feed com os vídeos transmitidos ao vivo em tempo real.

Então funciona como TV e como portal. Estamos estruturando uma grade com programas fixos de estúdio também. Não serão necessariamente só nossos mas formam um mosaico. A ideia é produzir e redistribuir conteúdo qualificado de produções que estão invisíveis na rede. Rodam atualmente 5 milhões de page views semanais na nossa página no Facebook. Teremos 100 articulistas, de dentro e de fora de nossa rede.

Que outros projetos?

Temos 140 festivais no segundo semestre. E organizaremos a ‘República da Cinelândia’, que não é só nossa mais. Um monte de movimentos ocuparão durante o mês da Copa a Cinelândia, criando uma zona autônoma temporária que vai ter Constituição própria. Na República a maconha é legalizada, a homofobia é crime, a polícia é desmilitarizada. São provocações.

Em que termos vai se dar essa ocupação?

De 150 a 200 pessoas morando em barracas e recebendo a visita de jornalistas internacionais e interessados nesta disputa simbólica e narrativa do que significa essa Copa.

Como visualiza o futuro do jornalismo?

O novo jornalismo não é o velho jornalismo sem dinheiro. O novo é multifacetado, diverso, ajudando a mobilizar. É partícipe, é parcial, replica o outro. Nesse novo ambiente onde todo mundo tem mais ou menos o mesmo tamanho, você vai ter mais visibilidade se colocando, do que tentando apresentar os dois lados. Na formulação da opinião, o meio termo é o zero a zero universal. Não te leva pra frente nem pra trás.

Mais opções
  • Google+
  • Facebook
  • Copiar url
  • Imprimir
  • RSS
  • Maior | Menor

Parkinson de diversões

Por Morris Kachani
17/04/14 13:11
O cineasta, com Parkinson há 14 anos, nos recebeu em seu apartamento, no Rio (Daniel Marenco/ Folhapress)

O cineasta, com Parkinson há 14 anos, nos recebeu em seu apartamento, no Rio (foto Daniel Marenco)

Por Tracy Segal

Assim que se abre a porta do elevador o visitante é recepcionado ainda no hall de entrada por um cartaz de cinema com Leila Diniz  e Paulo José, “Edu Coração de Ouro” – o segundo longa de Domingos de Oliveira, depois de “Todas as mulheres do mundo”.  Entrando em seu apartamento no quarteirão da praia no Rio de Janeiro vemos o cinema e o teatro estampado em fotos, cartazes e prêmios.

No escritório com vista enviesada para o mar do Leblon, sentado em sua poltrona estava Domingos de Oliveira.

Com um Parkinson que ralenta seus movimentos físicos mas não segura a rebeldia da cabeça veloz,  Domingos contou que tem um filme pronto para ser lançado com Fernanda Montenegro no elenco (segundo ele seu melhor filme), outro previsto para ser rodado ainda este ano, uma autobiografia saindo depois da Copa, além de duas peças que está ensaiando, aos seu incansáveis 77 anos.  “Isso por que somente trabalho nas horas vagas. É que tenho muitas horas vagas.”

Falamos  de arte,  vida,  velhice, morte, amor – e o convívio com a doença. “Continuarei afirmando grandiloquentemente que a vida é bela.”

*

Como foi descobrir que tinha Parkinson? O que efetivamente mudou de lá pra cá? 

Meu amigo Paulo José chama de Parkinson de diversões, tenho há 14 anos. Sou considerado paciente exemplar, posto que não tenho tremores. De um ano para cá ralentei meu passo, fica parecendo até que sou um velho de 77 anos. Escondi muitos anos meu Parkinson com medo de perder mercado de trabalho. As pessoas têm horror a doenças. É mais um preconceito. Parkinson nunca me atrapalhou de trabalhar, como prova a minha produção recente. Quando me perguntam na rua: “Domingos o que você está fazendo?”, continuo respondendo: “você tem tempo para me ouvir?”. Enfim, Parkinson não mata, terei de morrer de outra coisa. E o que não mata dá caráter. Fiquei bem mais inteligente com o Parkinson, ou terá sido com a idade? A velhice é coisa para os outros. Tenho 32, 34 anos. Sempre tive essa idade e sempre terei, por dentro. Por fora é aquela decadência dos 77, talvez 78 quando você estiver lendo esta entrevista. Estou ficando um pouco cansado com o incômodo dos sintomas. Mas Parkinson não mata. Quando alguém vem se queixar digo num certo mau humor, é uma gripe forte!

Como uma doença degenerativa como Parkinson repercute na sua vida e na sua obra?

É muito frustrante você saber que nunca vai ficar bom.

Existe poesia na doença?

Existe mais na saúde. Mas o sofrimento traz, como já disse, uma certa sabedoria e maior compreensão das coisas. Somente perto da morte (combinei comigo mesmo morrer aos 111 anos) é que se pode perder o medo dela. Mas não queiram ter Parkinson, ninguém sabe explicar de onde veio, é uma doença imprevisível e constante como uma louca nua.

A arte envelhece?

A arte é aquilo que não envelhece. Que tenta dar um truque no tempo. A Gioconda é sempre a Gioconda, por isso ela sorri. A arte é uma rebeldia contra a mais forte lei do tempo: tudo muda, tudo passa, tudo acaba. A arte não. É perene. Tem a safadeza de querer sê-lo. A arte que envelhece é a arte ruim. A boa arte vem da essência do homem, de uma fonte muito estável, confiável.

E o artista, envelhece?

Também não. Seus assuntos, suas preocupações, seu estilo certamente mudam e eventualmente podem envelhecer. O artista tem uma coisa a dizer, apenas. Ele mesmo. Por isso o público desavisado, o espectador, o leitor, por vezes se cansa do artista. Allen, Chaplin, Welles, Fellini e até mesmo Oliveira  fizeram sempre o mesmo filme. E pessoas de pouca imaginação, em vez de se regozijarem em seguir seu pensamento, vão para as esquinas dizer que o artista se repetiu, que é um vaidoso. Um auto-idólatra, um paranóico ou um pedófilo. Mas isso é o problema das outras pessoas, daquelas que envelhecem.

Diante da morte ocorre o empalidecimento da arte?

Eu poderia responder: diante da morte ocorre o empalidecimento de tudo. E poderia responder: não absolutamente! O artista sente medo de morrer como todos sentem. O medo tem muitos disfarces, poderia dar um baile à fantasia. Mas é sempre um só, o medo da morte. Diante desta preocupação magna, o artista pode, por algum tempo, pensar menos na sua arte, esquecê-la por momentos. Mas não é nada que um copo d’água gelado não resolva. Estou com medo desta entrevista, por que estas perguntas me obrigam a assumir este papel de representante da arte.

Um homem não deve confessar que é um artista. O fato lhe confere de alguma forma superioridade, causando imediata inveja ou outra reação violenta do tipo. Um amigo meu tem QI altíssimo esconde isso, como quem esconde a chave do cofre. Ninguém pode saber. É um segredo entre os artistas, mas eles sabem quem são, reconhecem sua turma. A palavra “arte” devia ser abolida, está gasta. Nunca conseguiu desvencilhar-se da aristocracia. Corroída pelos que sem entendê-la, odeiam-na. Perdeu o vigor. Um “filme de arte” é um palavrão. Recomendo trocar por “filme útil”. Por que isso que a arte é, acima de tudo: útil.   Único bisturi que alcança a esperança de resgate do mundo. Atualmente, por falar nisso, há uma certa ideia constrangedora de que o cinema, por exemplo, deve dar ao seu espectador o que ele quer e não o que ele precisa. Certamente não é uma coisa que se diga alto, nem que se possa defender. Qualquer ser pensante sabe da importância social da arte e sua privilegiada contundência na formação e no caráter das pessoas. Todo problema social é na verdade cultural. No aprimoramento das pessoas reside a chance única de evitar o caos iminente. O mercado é o caos. O cinema pode ser um bom negócio, tomara que seja. Mas não pode ser apenas um negócio. Sem arte é a barbárie, embora a obviedade da ideia, muitos não entendem, não tem esse compromisso.

E o amor, envelhece?

Sou um romântico, muita gente sabe disso. Creio que há algo de eterno no amor. Não usei a palavra errada, foi isso que eu quis dizer: eterno, além do homem. Não sei provar esta afirmativa, mas amar a pessoa é vê-la como Deus a fez. E olhe, não acredito em Deus absolutamente, sou um ateu místico como tantos. Mas que existe, existe. Como no ditado espanhol, “no creo em las brujas pero que las hay, las hay”. Deus é a ideia mais fértil que o homem já concebeu. A existência do próprio é um detalhe. E o amor, principalmente a paixão, é o Himalaia de Deus. Me desculpe, hoje acordei frasista. É tudo frase feita, vou tomar precauções de agora em diante.

O casamento resiste ou persiste ao tempo?

Para responder essa questão incômoda devo recuar um passo. O homem, embora no fundo goste de provar o contrário, é um animal primitivo, mal feito. Burro. O que lhe ensinam menino fica gravado indelevelmente. Na maior parte das vezes te leva a fazer burrices. A famosa adaptabilidade do Homo Sapiens, que lhe deu o polegar opositor e a posse do mundo, concentra-se apenas em seu intelecto. O sentimento profundo é arcaico, rígido. Os preconceitos que temos em nós contra o casamento são tão falsos quanto arraigados. A repressão sexual da humanidade é imensa, até Freud sabia disso. Somos todos meninas do Sacré Couer de Marie. Sartre, meu mestre querido e irresponsável, afirmava que a liberdade do homem é total e infinita. Pode até ser que Jean Paul não estivesse de porre numa mesa do Café du Fleur. Com certeza não se referia a liberdade sexual. Essa repressão básica obriga certa decadência dos casamentos. Mas não sei bem. Confesso que tenho encantos por minha companheira de décadas como se eu tivesse a conhecido ontem. Juro. Claro que não é todo dia, nem todo dia é dia santo. Não sei nada sobre o assunto, as pessoas cismam que sei. Estudei o amor em aulas teóricas e práticas a vida inteira. Concluí que é como a química orgânica: não é para entender, é para decorar. Odeio a coerência, eu.

O que é a juventude? Uma memória ou uma nova geração?  Qual a distância entre você e alguém da nova geração? Como vê a juventude atual? Como acha que te vêem?

Um monte de perguntas numa só. A juventude é um poder fantástico, quase sem limites. Mas nenhum jovem sabe disso. Não sinto distância na nova geração, mas eles sim, de mim.

Se você quer falar de um assunto, pontificar a sua sabedoria, eles param a festa, sentam ao seu redor respeitosamente, as moças até ficam mais encantadoras. E eles te ouvem até o fim. Mas aí recomeça a festa, e os jovens te deixam muito claro que você não é mais da “turma”. Eu não sou mais um deles. É  assim que eles me tratam. A vida é assim. Não sou mais um deles! Devo inclusive evitar com todas as minhas forças minha atitude natural de dar a ultima opinião certeira sobre os assuntos… se não quiser perder amigos. Desperdiçar minha sabedoria, e ficar calado muitas vezes, em vez de revelar tesouros preciosos que seriam úteis a todos. Ridículo. Vou subir este astral. O que você quer, que eu elogie a velhice ou arme o circo da auto piedade? De um lado o leão feroz, do outro o tigre sangrento.  Não farei nenhuma dessas duas coisas.Continuarei afirmando grandiloquentemente que a vida é bela. E se eu não tivesse o mundo dentro de mim, ficaria cego quando abrisse os olhos.

Concluindo. Meu mais recente e inédito filme “Infância” com Fernanda Montenegro é meu melhor filme. Minha autobiografia “Vida minha” sai logo depois da Copa, se houver um depois da Copa. Pretendo rodar dois filmes ainda este ano. Uma peça adulta e outra infantil etc. Isso por que somente trabalho nas horas vagas. É que tenho muitas horas vagas.

este desenho é do próprio Domingos, espécie de assinatura que ele utiliza frequentemente

Este desenho é do próprio Domingos, espécie de assinatura que ele utiliza frequentemente

 

Mais opções
  • Google+
  • Facebook
  • Copiar url
  • Imprimir
  • RSS
  • Maior | Menor

Alberto Dines: "a imprensa se atrelou demais ao mercado"

Por Morris Kachani
15/04/14 12:17

Dines -Fotógrafa Jacqueline Machado 005Qual o futuro do jornalismo? Faz sentido regulamentar a mídia? Que papel ela exerceu no golpe de 64?

Com mais de cinquenta anos de carreira, Alberto Dines, 84, ocupou cargos de chefia no “Jornal do Brasil”, na “Folha de S. Paulo” e no “Grupo Abril”, entre outros. Escreveu “Morte no paraíso, a tragédia de Stefan Zweig” (1981), biografia sobre o escritor austríaco que viveu no Brasil.

Dines está à frente do Observatório da Imprensa desde 96. O projeto, incubado na Unicamp, tem como objetivo fazer uma observação sistemática da cobertura midiática.

O Observatório tem uma plataforma na internet e também se transformou em um programa semanal na TV Brasil.

*

Como enxerga o jornalismo hoje?

É importante considerar que no mundo de hoje a grande revolução virá das comunicações, porque esse é o mundo da informação, e da contrainformação também. Agora, em termos de qualidade, eu acho que sobrou pouco. Porque a imprensa se atrelou demais ao mercado. Iria mais longe, acho que o mundo todo virou marqueteiro. A capacidade que o mundo ocidental tinha de confrontar e lançar ideias novas, hoje não tem mais. A prioridade é atender resultados e não o bom jornalismo.

Como define o momento atual?

Hoje os sujeitos querem sair da obscuridade imediatamente para os holofotes. E tudo isso foi um sistema criado, então aquela coisa de anos queimando a pestana, estudando, lendo, pensando, hoje não tem mais, você escreve três coisinhas e manda brasa. Isso não quer dizer que a imprensa não atenda às necessidades simplificadas do leitor médio. Mas não tem substância, não tem amarração.

Como visualiza o futuro da mídia impressa?

Ela tem futuro, mas a quantidade vai diminuir. Acho que a mídia impressa vai ser a grande referência. Por isso vai ser muito mais restrita, o que sob certo aspecto não é ruim. Ela tende a sedimentar, qualificar, mas vai perder esse caráter massivo que ainda tem hoje.

Quais são os exemplos inspiradores?

Tive uma conversa com o Glenn Greenwald que foi muito interessante. Ele saiu do “The Guardian”, onde era colunista, e foi pro “First Look Media”, do dono do eBay, bilionário que resolveu financiar projetos de jornalistas independentes, por achar que alguma coisa tinha que mudar na imprensa. Veja bem, não são empresas independentes, são jornalistas independentes. O Glenn não acredita no papel, acha que vai acabar, mas acredita muito na internet, sobretudo nos jornalistas que queiram se levantar contra um poder – pode ser do Estado, até da religião, qualquer tipo de poder. E parece que o negócio está funcionando, eles dão acompanhamento, não interferem em nada. Achei que aí tem um caminho.

Qualquer tipo de poder?

Pois é, este caminho tem duas mãos, porque tem perigos também. Por vontade própria você se insurge contra um determinado tipo de poder e pode acabar entrando em caminhos fascistas. Esta é a dinâmica do relativismo. O próprio Snowden começou bem republicano. Ainda sou da era ideológica, ainda tenho um pé atrás com essas mutações muito bruscas. Lembre-se dos discursos básicos de Hitler, ele era um líder operário de direita.

E a TV?

Os críticos de TV que existem hoje falam para si mesmos. Não existe uma crítica sobretudo moral, no grande sentido da moralidade, ao que passa na TV. São esses valores que são transmitidos para a sociedade. Todos se dizem surpresos com a violência no Brasil, mas ela goteja da programação da TV.

E a internet?

Acho que a internet não consegue te dar essa densidade mas aí sou suspeito.

As faculdades de jornalismo estão cheias de estudantes.

Essa gente vai virar assessor de imprensa. Nas federações de jornalismo, 70% das pessoas são assessores. As faculdades não servem. Sou a favor dos cursos profissionalizantes de jornalismo, como o programa de MBA que tinha na ESPM, e que infelizmente foi suspenso este ano.

Com a Copa e as eleições, você acha que os ânimos estão muito exaltados no Brasil?

Muito, e no mundo também. No Brasil ainda mais, porque você tem certas fagulhas. Uma foi ano passado. As manifestações trouxeram um pavio que ainda está aceso. Estou prevendo um ano complicado.

Que achou da cobertura das manifestações, em termos midiáticos?

Junho pegou todos de surpresa. Ninguém soube avaliar a dimensão deste dado novo no tabuleiro jornalístico e também político.

Que elementos novos vieram à tona?

A imprensa não sabe aproveitar as oportunidades, infelizmente. Veja que mesmo durante a censura houve no Brasil um grande jornalismo praticado pela pequena imprensa e alternativa. Mas estas experiências não sedimentaram em nenhum lugar, nem pela linha de sátira e humor crítico que fazia o Pasquim, e nem pelo jornalismo de fôlego que veículos como Opinião e Movimento tinham.

E junho?

Continuo dizendo que a Mídia Ninja tinha coisas pra serem aproveitadas que eles próprios não souberam aproveitar. Desapareceram. Querem voltar mas acho que perderam o bonde quando estavam em alta velocidade.

Quais os atributos deste projeto?

É essa TV não cosmética, que você vai, faz e nem precisa editar. Uma coisa mais crua e improvisada. A TV no Brasil é muito editada, então perde muito da espontaneidade.

Caricatura do jornalista feita por Lan, nos anos 70

Caricatura do jornalista feita por Lan, nos anos 70

E o que dizer sobre o golpe militar, 50 anos depois?

Meu enfoque está na participação da mídia. Tem muitas coisas, até coisas que chamaria entre aspas de positivas mas que no bolo não se destacaram. Por exemplo, em algum momento a imprensa, as classes produtoras e os empresários se uniram a Jango, cerrando fileiras com o legalismo. Jango vinha como vice do JK, que de esquerdista não tinha nada. Não houve choque. Jango se dava bem com os donos de jornal. Não houve um confronto como por exemplo com o Franklin Martins brigando com a mídia, no governo Lula.

E depois?

A conspiração ocorreu quando já se tinha decidido que tinha que fazer o golpe. Não sei em que momento exato, mas foi depois que prevaleceu o presidencialismo. Golbery foi vital, inclusive para preparar a imprensa, criando um clima favorável ao golpe na opinião pública.

Os milicos não tinham pensado numa ditadura. São essas coisas trágicas, você começa uma ação dramática sem pensar nas consequências. A intenção era de um golpe cirúrgico para tirar o Jango e pronto. Mas aí as vaidades entraram em campo, esse é o elemento trágico.

E dentro das redações, como era o clima?

Você tinha de tudo , inclusive muitos militantes de esquerda. O Fernando Gabeira por exemplo trabalhava comigo, no Jornal do Brasil. Já era um militante, mas não tinha aderido à ação armada.

Havia conflito de consciência?

Não havia. Às vezes o dono de jornal empombava mas a gente embromava ele e ia em frente.

Dentro de uma linha editorial definida.

Como na Folha hoje, só que hoje a Folha tem muitos colunistas. A grande diferença é que os jornais de antes não eram tão colunizados. Eram jornais de informação.

Isso é bom?

Esse sistema seria bom se tivesse pluralismo. A seleção dos jornais é rigorosamente ideológica. A Folha ainda se permite, tem o Vladimir Safatle que é um homem de esquerda mas quase o único, além do Janio de Freitas.

Que acha da Rachel Sheherazade, e a decisão de proibi-la de fazer comentários no telejornal?

Não quero falar sobre esta falsa Sheherazade (que ao contrário da outra, a legítima, não sabe contar histórias, não é do ramo). Se ela entrar no papo acabaremos discutindo as cuecas do Neymar. O que aliás já está acontecendo.

Como você se posiciona politicamente?

Meu pai foi sempre um social democrata, que ajudou a construir os fundamentos do Estado de Israel na época de Ben Gurion. Ele participava de um partido lá na Rússia, foi secretário dele no Brasil, delegado do Congresso Sionista.

E você?

Eu sigo essa linha. Fiz parte desta juventude sionista, juntamente com companheiros como o Paul Singer.

O que é ser social democrata?

O social democrata pretende fazer reformas sociais sem revolução ou meios violentos. De forma progressiva e estudada. Se Jango tivesse ouvido Celso Furtado por exemplo, não teríamos o golpe militar. O Brasil já teve bons quadros, como o Covas ou o Montoro, que vinha da democracia cristã. Você tem assim certas ideias do antigo Partido Verde da Marina que fazem sentido. Esse negócio de que só o crescimento vai nos levar a alguma coisa não está com nada, é preciso ser sustentável.

Você é a favor da regulamentação da mídia?

Você não pode deixar de ter. Sobretudo da mídia eletrônica pois se trata de concessões cujos preceitos não estão sendo cumpridos. Para mim, concentração é a palavra-chave. Em outras palavras, propriedade cruzada. É preciso regular justamente a competição. O panorama oligopolista que tem no Brasil é inaceitável.

A regulamentação não pode se transformar em censura?

Na semana passada o presidente do STF, Joaquim Barbosa, falou a respeito. Para ele, falta pluralismo e diversidade. Disse ainda que a imprensa é propensa e tem um viés à direita. Reafirmou isso dizendo que a regulamentação não significa controle de conteúdo.

Explique melhor.

Em todos os países desenvolvidos você tem a mídia regulamentada. O “New York Times” por exemplo, sempre sonhou em ter uma TV e nunca conseguiu. Aqui não tem nada, nada, nada. É preciso regular a competição. Quanto ao conteúdo, você vai nele sobretudo no caso das concessões de rádio e TV. Elas deveriam ser examinadas. É preciso verificar se o compromisso com a cultura e a educação estão sendo cumpridos. Ninguém verifica isso.

Então a briga da Cristina Kirchner com o grupo Clarín tem senso, na sua opinião.

Tem. A única coisa que não faz sentido é que ela e o marido respeitaram esse jogo até o momento em que o jornal resolveu pisar no calo do governo. Aí começaram a tirar o poder. Tiveram que dividir a empresa, porque estava grande demais.

E na Venezuela?

Aquilo lá é uma ditadura e acho que ainda vai correr muito sangue. Maduro tem contra ele também a esquerda esclarecida.

E a mídia venezuelana?

O ódio de Chavez tinha justificativa, pois o golpe contra ele em 2002, foi engendrado em um estúdio de TV. E ele, como simplista brutamontes, pensou que, se fizeram uma vez, vão fazer outra.

Como o judaísmo se entrelaça com sua atividade?

Sou cada vez mais judeu. Mas judeu nas últimas consequências. E eu acho que judeu é aquele que discute com Deus. Os grandes judeus, como Jesus por exemplo, discutiam com Deus. Então o judeu sob o ponto de vista conceitual é o marginal com coragem de fazer perguntas desconfortáveis.

E Israel?

Fui criado em uma casa sionista, mudei de vida por causa do sionismo – parei de estudar e nunca mais voltei, a ideia era ir morar em Israel, no fim dos anos 40.  Mas depois, quando Begin foi eleito eu pensei: ‘Não aguento mais’. Lasquei pau na imprensa, a comunidade queria me excomungar, tô brigando com a comunidade até hoje (risos).

Mais opções
  • Google+
  • Facebook
  • Copiar url
  • Imprimir
  • RSS
  • Maior | Menor

Nise da Silveira, por ela mesma

Por Morris Kachani
11/04/14 16:43

niseUma entrevista com a médica psiquiatra alagoana Nise da Silveira (1905-99), feita pelo diretor Leon Hirszman (1937-87), que estava esquecida nos arquivos da Cinemateca Brasileira, em São Paulo, se transformou em “Posfácio – Imagens do Inconsciente”, filme que chega hoje ao Festival “É Tudo Verdade”, pelas mãos do cineasta Eduardo Escorel.

Nise revolucionou a psiquiatria no Brasil, ao introduzir a terapia ocupacional para os esquizofrênicos como forma de resgate da realidade, através da expressão artística e do trabalho manual. Em outras palavras, criou oficinas e ateliês de pintura, modelagem, costura, sapataria, encadernação, fazendo um contraponto à cultura do confinamento, do eletrochoque, da lobotomia e do uso excessivo de remédios que predominava em hospitais psiquiátricos da época.

Pioneira no estudo e divulgação da psicologia de Carl Jung, com quem trocou correspondência, Nise também criou o Museu de Imagens do Inconsciente, destinado à preservação dos trabalhos produzidos nas oficinas. E a Casa das Palmeiras, voltada à reabilitação de pacientes egressos de centros psiquátricos. O Museu e a Casa continuam em atividade.

Hirszman já havia dirigido a trilogia “Imagens do Inconsciente”, que consiste em três estudos de caso sobre os doentes e o trabalho artístico que desenvolviam.

A respeito dessa estreita colaboração, Nise escreveu um texto em que tece elogios à “penetração psicológica e artística” de Leon e “um vigoroso sentido social, se não político”, da trilogia.

Leon, que flertou com pensadores como Hegel, Feuerbach, Marx, Engels, Gramsci, Marcuse, Brecht, é conhecido pela direção de clássicos brasileiros como “Eles não usam black tie”, “São Bernardo”, “ABC da greve”.

Escorel, que era muito próximo de Leon, trabalhou na montagem de “Black tie” e “São Bernardo”, e realizou um documentário sobre o cineasta, “Deixa que eu falo”, de 2007. A respeito de “Posfácio” ele afirma, “trata-se de material que adquiriu o status de preciosidade arqueológica. O negativo original se perdeu, só existia uma cópia em 16 mm e o áudio completo”. A entrevista foi feita em duas etapas, nos dias 15 e 19 de abril de 1986.

Um ponto alto do documentário sem dúvida está na montagem a cargo de Escorel. Além da entrevista em si, que ocupa quase todo o tempo do filme, Escorel também recupera trechos do áudio de Nise que não foram filmados, e intervenções em off de Leon, com ou sem a câmera ligada.

Vários momentos são também pontuados por uma certa tensão no ar, diretamente relacionada à necessidade de economizar filme. “Naquela época, era sempre um pânico, o que mais se ouvia durante as filmagens eram frases do tipo ‘corta o mais rapidamente possível, antes que os negativos acabem’”, lembra Escorel.

Ele enxerga três grandes qualidades em “Posfácio”. Seu ineditismo, por se tratar de rara aparição da doutora Nise em registro audiovisual; a exposição da dinâmica de relacionamento entre ela e Leon, que tinha uma admiração sem limites a seu trabalho; e a descrição de duas questões cruciais para a psiquiatra – a terapia ocupacional e a reabilitação de doentes vindos de unidades psiquiátricas.

Luiz Carlos Mello, que trabalhou com Nise por 26 anos e atualmente dirige o Museu de Imagens do Inconsciente, participou das filmagens da entrevista. Ele conta que a entrevista era o ponto de partida para um trabalho mais abrangente que abordaria o círculo vicioso do doente que fica confinado no hospital sem acesso a uma vida social e familiar.

“Depois que ele recebia alta, quase sempre retornava. Esse índice era de 70%. Era preciso quebrar este círculo, e o filme seria sobre isso”.

A Casa das Palmeiras, fundada em 56, com a proposta de receber pacientes externos em um contexto intermediário entre a rotina hospitalar e sua reintegração à vida social, sempre representou um esforço nesse sentido.

As falas de Nise são tocantes. Sobre a “emoção de lidar” com o material de trabalho na terapia ocupacional, por exemplo. Primeiro ela menciona o francês Gaston Bachelard, a dizer, “sua saúde mental está nas suas mãos”. Depois menciona uma visita de Philippe Pinel, no fim do século 18, a um hospital na Espanha onde ficavam doentes de todas as categorias.

“Então, Pinel escreve mais ou menos isso: o nobre não pode pegar… trabalhar nada. Diz assim: ‘dê cá um copo d’água’. Não pode buscar um copo d’água. Os nobres que ficavam doidos, com a cronicidade de suas doenças, de seus delírios, a sua inatividade. Enquanto os plebeus que trabalhavam no campo, curavam-se muitos deles”.

Se cabe uma crítica ao filme, é à ausência de uma pesquisa de campo que pudesse contextualizar a obra de Nise ou um olhar sobre sua influência na psiquiatria nos dias de hoje. O que representaria seu pensamento à luz da reforma psiquiátrica visando a humanização no atendimento, ou sobre a evolução dos medicamentos no controle das crises? Ela, que chamava o uso excessivo de remédios de “camisa de força química”.

Mas não se pode exigir tudo de um só filme. E é bom lembrar que nos créditos, quem aparece como diretor é o próprio Leon, reforçando a ideia de que o recorte está situado na edição de uma entrevista com 98 minutos filmados de duração, e 2 horas e 37 minutos de áudio.

Mais opções
  • Google+
  • Facebook
  • Copiar url
  • Imprimir
  • RSS
  • Maior | Menor
Posts anteriores
Posts seguintes
Publicidade
Publicidade
  • RSSAssinar o Feed do blog
  • Emailblogdokachani@gmail.com

Buscar

Busca
Publicidade
  • Recent posts Blog do Morris
  1. 1

    Laerte: no Brasil Charlie Hebdo não existiria

  2. 2

    A Bela princesa da Tropicália orgânica

  3. 3

    Quarteto fantástico

  4. 4

    A reforma política segundo Marcelo Freixo

  5. 5

    Um anti-herói russo na América

SEE PREVIOUS POSTS

Categorias

  • Uncategorized

Blogs da Folha

Publicidade
Publicidade
Publicidade
  • Folha de S.Paulo
    • Folha de S.Paulo
    • Opinião
    • Assine a Folha
    • Atendimento
    • Versão Impressa
    • Política
    • Mundo
    • Economia
    • Painel do Leitor
    • Cotidiano
    • Esporte
    • Ciência
    • Saúde
    • Cultura
    • Tec
    • F5
    • + Seções
    • Especiais
    • TV Folha
    • Classificados
    • Redes Sociais
Acesso o aplicativo para tablets e smartphones

Copyright Folha de S.Paulo. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress (pesquisa@folhapress.com.br).